Contagem regressiva
Era Maria. Maria de tantas Marias. Marias de tantas crendices. Marias de tantas tolices. Tinha seus vinte e tantos anos e outros tantos planos e outros ainda tantos enganos. Mas Maria tinha lá suas paixões que não eram outras, eram únicas. Embora, mesmo únicas, suas paixões tinham um gosto de outras.
Paixões? Um noivo que já a enrolava há oito anos, um cachorro que ela chamava de bola e uma ligação fantástica com a seleção brasileira. Sonhava com o dia da final da Copa do Mundo e quando esse dia chegava, o sonho se transformava em seu pior pesadelo, quase um câncer selvagem. Maria pendurava a bandeira brasileira na sacada do seu apartamento. Cobria bem umas três janelas de uns vizinhos não muito simpáticos. Vestia uma de suas tantas camisetas da seleção brasileira. Às vezes vestia uma por cima da outra. Elas se enfileiravam como pedras de dominó nos cabides do guarda-roupa, que tinha as portas tomadas por dezenas de fotos de seus ídolos. E como ela suspirava por aqueles homens que levavam o Brasil em suas pernas tortas.
Era uma Maria que ascendia vela pro seu santo de confiança, fazia novena, fazia promessa, fazia e desfazia de um tudo para o Brasil ganhar. Talvez porque fosse sua forma de ganhar alguma coisa, de ter orgulho de um país que lhe pagava um salário miserável de professora de menino e... Mas isso é assunto para um artigo. Voltemos à contagem regressiva para a Copa do Mundo. Os ponteiros se agitam e chega-se o grande dia.
O jogo começa e o Brasil, em pleno solo alemão, faz uma revanche contra a França. Nem mesmo Hitler e Napoleão resistiriam ao fanatismo de Maria. Maria torce roendo-se e se corroendo em surtos de prazer e dor. Maria que era Maria da alegria fica a beira de um ataque de nervos e xinga e excomunga e comunga dos desejos de uma multidão. Nem parece a tia Mariazinha que os alunos puxam o cabelo e pedem colo. Diante da TV, Maria chora, esperneia, grita. Feito uma lagartixa, torce e se retorce. Ajoelha, reza, xinga, excomunga o juiz e os santos que não a valiam naquele momento. De repente, do pranto nasce um silêncio sepulcral. O placar tira de Maria um último suspiro. O apito final do juiz estremece os ossos de Maria. Para a tristeza geral de uma Maria, o Brasil fora vencido.
Os guerreiros canarinhos tombam ao chão. E o gramado se confunde com o piche de uma avenida de mão dupla cheia de carros buzinando. E o gramado se confunde com a lama do vale dos suicidas. E o gramado ganha a imensidão de um mar azul petróleo sem faróis, sem guarda costeira, sem remanso.
Maria, como na ficção de guerra nas estrelas, teletransporta-se para aquele mundo. Não acredita. E em uma atitude cheia de contra-indicações, Maria deixa o noivo, deixa o cachorro, deixa as imagens da TV e sai pela rua. Mas não sai como saia todos os dias rumo à escola, à padaria, à sorveteria. Sai com o rosto pintado de verde amarelo como pintura indígena de guerra. Na terra em que a lua é Jaci, Maria é guerreira da tribo Brasilis. De minissaia verde e camisa canarinho baby-look, Maria sai pela orla vazia de tristeza.
Os bares esvaziados. Até os bêbados de profissão colocavam o luto na boca e iam cabisbaixos pra casa. Aos tropeços, mas iam. Enquanto isso, Maria andava pisando firme. E a Maria de tantas rezas era a Maria de tantos decotes, fendas e desejos. Desejos de vingança saltavam-lhe dos poros. Sem dar-se por vencida, Maria anda até encontrar um francês. Olhos azuis, camisa da seleção número 10, aquela que fizera o mais trágico dos gols, cabelo loiro e uma língua incompreensível. Mas isso não era problema.
Correndo pelas escadas de sua torre de babel, Maria se comunica com o corpo. Exibe as pernas com a violência de um carrinho por trás. E os dois corpos se espremem em um gueto, sob a marcação acirrada de desejos tão díspares. Maria geme. O francês esquece o j?taime e grita feito um revolucionário. Um desespero de final de campeonato invade aqueles amantes. São cinco, seis, sete ataques e contra-ataques até que, como num mal súbito, o francês, exausto e sangrando, pede substituição.
Maria sorri, rasga aquelas costas iluministas com seu esmalte verde-amarelo e sai pela orla, com o gosto de liberdade, igualdade e fraternidade em sua boca e, no seu imaginário, abre uma nova contagem regressiva.
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