Daniel Campos

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11/07/2010 - Carta a Vinícius

Caro poetinha,

Sinto em lhe informar, mas se estivesse aqui, com a alma encarcerada num corpo físico, limitado à vida mundana, não escreveria com a facilidade característica. Com todo respeito ao fato de que estaria quase completando cem anos se a morte não ousasse lhe visitar naquele trágico julho de 1980, o obstáculo o qual me refiro não tem relação alguma com a idade.

Sua Excelência, pois foi nomeado ministro de primeria classe, era um descobridor do universo feminino. Um poeta do mistério. Com delicadeza e tato aguçado, explorava o território feminino tanto na superfície estética quanto na profundidade da dialética que há em cada mulher.

Na poesia viniciana a mulher é vista como um ser coberto de mistério, medos e perigos, como a lua que seduz a gregos e troianos no mesmo céu.

Embora possível, o amor em seus escritos permanece como um instrumento de contemplação. Uma busca constante e intermitente. A mulher jamais aparece por inteira na poesia assim como o amor não surge como obra acabada. Há sempre algo que fica para depois. E é nisso, velho Vina, que está todo o encanto.

Hoje, amor e mulher, dois elementos complementares e fundamentais a sua obra estão banalizados. Tudo parece fácil demais. O flerte, uma das principais ferramentas da sua construção, poetinha, está praticamente extinto em decorrência da velocidade e da superficialidade das relações.

Hoje existe muito pouco de mistério em torno das instituições do amor, da mulher e do sexo. Tudo está deveras exposto, de maneira nítida e didática, na televisão, na internet, nas revistas, na rotina de cada um, independentemente de classe social ou faixa etária.

O processo de sedução perdeu várias de suas etapas. A poesia deixou de ter valor fundamental. Nem mesmo as mulheres, sempre tidas como românticas, fazem do amor uma prioridade. O processo amoroso foi deixado em segundo plano, assumindo papel de coadjuvante na maioria dos espetáculos cotidianos.

A busca por uma carreira ocupa mais tempo do que a busca pelo amor. Viver primordialmente de amor é coisa para poucos atualmente. O amor se tornou um hobby, algo para as horas vagas. Afinal, num mundo em constante mutação não há tempo a perder com as coisas do coração.

Tudo ficou muito prático, muito acessível, muito descoberto. Como desvendar um campo já revirado pelo avesso? A imagem é outra, tanto comportamental quanto literária. E sabemos perfeitamente que poesia alguma sobrevive só de estética.

E pior: talvez nem mesmo a mulher queira ser aquela criatura idealizada, adorada, tratada como algo sobre-humano. De certa forma, a poesia fragiliza a mulher, que hoje quer ser forte a qualquer preço.

Para este aprendiz de poeta, você estaria entre nós, tomando seus uísques em bares e banheiras até os dias de hoje. No entanto, é preciso admitir que talvez você tenha morrido na época certa.

Se estivesse preso a essa realidade, certamente se angustiaria em meio a um mundo que não permite mais, exceto raríssimas exceções, que amor, mulher e poesia se unam em uma só matéria. Essa fusão romântica não mais ocorre do modo que sempre gostou de cantar em seus versos e prosas.

Longe de mim lhe aborrecer com essas coisas, mas a poesia deixou as ruas, os olhares, as relações e foi exilada nos livros. E o amor, embora invocado em meio a um universo incontável de eu-te-amos, já não segue tão vivo como antes.

O mistério que havia nisso tudo e que o alimentava esmoreceu. Tudo é descartável e volátil demais para um poeta que tinha como força-motriz revelar a natureza oculta da vida. Não é à toa que o amor mundial anda em crise. Uma crise que só tende a se agravar e, talvez, levar a humanidade ao apocalipse.

Nem água, nem fogo, os cavaleiros do apocalipse, meu caro Vinícius, nascerão da falta de amor.


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