04/08/2011 - Capítulo 67
Um ano depoisE eis que um ano se passa. Um ano sem notícias de Jhaver. Um ano. Para os humanos, muito. Para os espíritos, nada. Um ano. Tempo suficiente para descobrir um novo deus, para pegar outra estrada, para derrubar uma verdade, para nascer, para morrer, para renascer...
Tempo para enlouquecer. A mãe de Sebastian perde o pouco que lhe restava de lucidez. Surta. Passa a viver em uma clínica repetindo variações de uma ladainha sem fim:
- Meu filho não é meu filho. Meu filho é filho do castigador. Meu filho é o castigador. Eles têm o mesmo sangue, a mesma sina, o mesmo ímpeto em castigar. Meu filho castiga. Meu filho é o castigo. O castigo em pessoa. É isso o que ele é, o castigo, o castigo e o castigo.
O pai, com todo aquele discurso moralista de que Sebastian não podia isso e aquilo, interna a mulher na hora do almoço e antes no jantar já é sua amante quem dá as ordens em sua casa. Uma mulher mais jovem e com menos escrúpulo. Andava com lentes coloridas, profundos decotes e fumando um cigarro atrás do outro.
Sebastian chegou a visitar a mãe no manicômio, mas não foi bem recebido. Agressiva, foi para cima dele com unhas e dentes, depois correu e, chorou e se debateu dizendo para que tirassem o filho do castigador dali:
- Ele vai me bater com seu chicote. Ele vai me machucar. Ele vai me levar para as sombras. Tire o daqui! Ele conhece os meus pecados. É impossível esconder dele meus erros, minhas falhas, minhas faltas. Ele sente o cheiro de pecado. Ele quer me castigar. Ele vai me castigar.
Diante dos olhos do filho, vomita:
- Maldito! Maldito! Você só traz dor para os outros. Você é o desastre, o câncer e tudo quanto é castigo que há nesse mundo. Você é o castigo. O filho do castigador é o castigo. O castigo em carne e osso. E pensar que você saiu de mim... Meu ventre deve ter sido amaldiçoado. Não foi à toa que depois ele secou e eu nunca mais puder filhos de verdade. Você me castigou para sempre.
Aos gritos, pede para que os enfermeiros a tranquem no quarto longe dela e que nunca mais o deixem entrar ali. E faz outros alertas:
- Cuidado! Se ele tocar em você (apontando para uma enfermeira), vai ficar marcada. Vai ficar cheia de feridas. Eu só de olhar para ele já estou sentindo cólicas. Ele veio aqui pra trazer a cólera. Ele é o quinto cavaleiro do apocalipse. Ele é o castigo, o castigador, a castigação... Fujam dele. Fujam de seu sofrimento. Mandem-no embora. Rápido! Embora... Mandem-no... Por favor...
Há quanto tempo aquela mulher não dizia “por favor”? Alguma coisa havia mudado dentro dela. Por mais louca que estivesse, estava mais humana. O medo lhe humanizava. Pena que já era tarde demais...
- E onde está meu marido? Esse filho do castigador dever ter matado meu marido. Por isso estou aqui sozinha. Por que me tiraram de casa? Esse monstro deve ter possuído a minha casa. Meu marido me deixou aqui porque deve ser mais seguro para mim. É isso. Eu me lembro agora. Ele disse que me trouxe para cá para me proteger. Mas quem vai protegê-lo? Se é que essa hora ele já não está morto. Estou sentindo cheiro de sangue. Esse castigador matou meu marido. Assassino! Assassino! Ele quer me matar! Tirem-no daqui! Tirem-me daqui!
Ela começa a chorar compulsivamente. Uma cena deplorável. Os enfermeiros conduzem Sebastian para fora do quarto e da vida daquela mulher que um dia ele chamou de mãe. Sai engasgado, mas consciente de que o castigador ali não era ele.
Doído com o sucesso do filho, o pai disse a um tablóide sensacionalista que a mãe enlouqueceu por conta dos sucessivos desgostos trazidos por Sebastian. Chegou a dizer que ele era assim porque apanhou pouco. Se tivesse levado uma boa coça quando menino não ficaria inventando histórias de espíritos para assustar os outros. E frisou:
- Não sou pai de aberração, tampouco de charlatão. Não tenho mais filho. Aliás, acho que ele nunca foi meu filho. Sempre desconfiei disso. Não temos nada em comum, nem física nem comportamentalmente falando.
Sebastian também comungava dessa sensação. Cresceu sem conseguir se enxergar no pai. Não encontrou o amor na mãe nem o exemplo no pai. Criou-se no meio daquela família como um órfão, que busca referências e caminhos em desconhecidos. Talvez por isso não se abatesse com esses episódios. Estava blindado pelo tempo. Sempre teve que cuidar de si sozinho, sem o apoio deles, e agora não seria diferente.
Desde o lançamento do livro, percorria o mundo com palestras levando O Castigador para outros países. Conforme anunciado, todo dinheiro arrecadado com o livro era destinado a obras assistenciais. O Centro Espírita Sementes de Luz cuidava dos investimentos sociais na Argentina e também em países pobres de todo o planeta.
O castigador, que para muitos só trazia horror e perdas, salvava milhares de vidas. Vidas de católicos, de evangélicos, de candomblecistas, de islâmicos, de espíritas, de ateus... Matava a fome, tratava doenças, amenizava o frio, proporcionava educação e conhecimento...
Institutos de pesquisa divulgavam um crescimento espantoso no índice de pessoas que se declaravam espíritas e que acreditavam tanto em vida após a morte quanto na existência dos castigadores.
Ainda havia críticos ferrenhos, e muitos, mas também aumentava consideravelmente a quantidade de defensores da ideia de que Deus também castiga. O anjo castigador passava a ser visto como o fiel da balança entre ação e reação.
Conforme previsto por especialistas, O Castigador se tornou o principal livro religioso lançado depois do Alcorão, da Bíblia e do Evangelho segundo o Espiritismo. Um ano depois ainda era o assunto do dia.
Cópias e mais cópias eram impressas. Uma edição atrás da outra. Já havia se transformado em best seller. Não é qualquer livro que fica um ano no topo da lista dos mais vendidos. Mesmo quem se dizia contra a ideia de um castigador, comprava o livro para matar sua curiosidade ou, simplesmente, para ter um exemplar daquela obra tão falada e polêmica.
A imprensa descobriu que algumas igrejas estavam empilhando O Castigador em seus porões. Queriam tirá-lo de circulação. Foi preciso limitar a venda de um exemplar por pessoa em alguns locais. Caminhões que transportavam esses livros chegaram a ser interceptados. Cargas inteiras foram saqueadas e tiveram seus destinos ignorados.
Enquanto havia quem fizesse rodas de estudo para discutir o livro, outros, movidos pelas igrejas, reuniam-se para queimá-lo em fogueiras santas. Certos pastores chegavam a dizer que quem tocasse naquela obra do diabo estaria imediatamente condenado ao inferno.
Países mais conservadores proibiram a entrada e a comercialização dessa obra. Algumas cidades incluíram o livro na grade escolar. Padres chegaram a abandonar ou serem expulsos da igreja por simpatizarem com o livro que virou objeto de discursos de políticos, de celebridades, de religiosos, de anônimos...
De uma forma ou de outra, O Castigador vinha revolucionando o mundo.
Havia quem dissesse que num futuro distante o lançamento desse livro seria visto como um divisor de águas no que diz respeito à relação da humanidade com o divino.
O livro transformava pessoas. Semeava a inquietude. Plantava mudanças. Perturbava o status quo interior. Era impossível ficar indiferente depois de lê-lo.
Do mesmo jeito que o castigador era uma ponte entre deus e a humanidade, o livro ligava o leitor a outro universo. Um universo paralelo.
Sebastian era outro. Não existia mais aquele homem prepotente, nervoso, senhor da razão, egoísta. Era um homem melhor depois de seu encontro com o senhor dos castigos. O promotor impetuoso havia ficado para trás. Coordenava um grande escritório de advocacia, que destinava boa parte de seus horários para atender, gratuitamente, causas populares.
Malena havia retomado sua vida. Desenhava as coleções de sua rede de joalherias e cumpria suas obrigações espirituais. Ficava boa parte do dia no Sementes de Luz cuidando dos projetos sociais. Tinha pulso firme e sensibilidade suficientes para trabalhar o espiritual e o material sem prejuízos à essência e ao exercício da doutrina.
Micaela havia mudado. Acabaram-se os cabelos coloridos, as roupas desencontradas, a garota impulsiva. A rebeldia adolescente deu lugar a uma mãe dedicada e a uma das principais ativistas do centro. O Castigador se espalhou pela internet e pelas redes sociais atraindo muitos jovens. Mergulhava fundo no mundo digital envolvendo o centro e o livro. Paralelo a esses espaços, criou um blog, com fundo espírita, para contar suas experiências como mãe adolescente. Queria ajudar outras meninas.
Seu filho era a alegria da casa. Era atestadamente a volta de Diego ao seio daquela família num contexto totalmente favorável, diferentemente do que aconteceu em sua descida anterior à crosta terrestre.
Valentina via com muito gosto aquela união familiar em torno de um centro espírita que nasceu com seus antepassados. A matriarca, como era chamada, do alto dos seus setenta e poucos anos, ainda conduzia muitas sessões e se encarregava de atividades essenciais como a fluidificação da água.
Tomaz também participava das atividades do centro, principalmente das culturais. Entregou-se de vez à música. Integrava uma banda de pop-rock com mais quatro amigos da escola. Tocava cada vez melhor. Isso ajudou com que superasse a prisão do pai. Chegou a chorar, a ficar dias no quarto, a perder o apetite, mas não quis nem saber de visitá-lo na cadeia.
Celeste viajou no último semestre para uma pequena cidade da França. Vive de sua arte. Suas pinturas mediúnicas estão sendo bem recebidas. Chegou a montar uma exposição com seus quadros. Ficou bastante conhecida por ser autora da capa de O Castigador. Mesmo longe de Buenos Aires, continua trabalhando com espiritismo e com crianças.
Hernandez, Alicia e o sacristão estavam na penitenciária cumprindo suas respectivas sentenças. Tita havia sido condenada a cumprir penas alternativas. Mudou-se para a casa de parentes. Já o sobrinho de Malena estava sendo criado pelo pai. Mantinham pouco contato.
Um novo padre foi designado para conduzir a Igreja de São Miguel Arcanjo. Domingo Santillán. Da mesma escola que monsenhor Mariano, era contra tudo o que estava escrito em O Castigador. Pregava em seus sermões o ideal de um deus amoroso incapaz de punir ou causar sofrimento. Só que ao contrário de seu antecessor, dizia que a Igreja estava de portas abertas para Sebastian. Que ele ainda ia se arrepender do que disse e se reencontrar com o verdadeiro Deus.
Sebastian nunca mais entrou naquela igreja. Além de não ter boas lembranças, não sentia falta alguma de lá. Saudade mesmo só de Jhaver, que nunca mais aparecera. Chegou a sentir sua presença, porém não conseguiu mais vê-lo ou ouvi-lo. Depois da convivência intensa, o amigo havia partido sem deixar sinais.
Eram muitas as dúvidas sobre seu paradeiro e seus feitos.
Será que havia cumprido sua missão e desaparecido?
Será que havia se arrependido de ter se tornado samaritano?
Será que se zangou com alguma coisa?
Será que o livro lhe prejudicou?
Será que ensaiava sua volta ao Conselho dos Castigadores?
Será que sofria as conseqüências de sua atitude?
Sebastian continuava mantendo contato com espíritos de luz seja nas reuniões do centro ou durante o sono. Visitava o plano extrafísico com freqüência e se lembrava com lucidez dessas visitas. Só não se lembrava de Jhaver. Ao perguntar para Klaus e outros sobre o anjo negro, eles se limitavam a dizer que estava bem, seguindo seu caminho evolutivo e que um dia ainda iriam se encontrar.
Será que esse dia realmente iria chegar?
Sebastian não sabia responder essa questão nem para ele nem para os outros. Afinal, não era só ele quem queria notícias do ex-castigador.
Além da mídia, de espíritas e de populares, empresários e artistas estavam à espera de um novo contado de Jhaver. Queriam transformar o livro em filme, em peça de teatro, em programa de televisão, em musical. No entanto, a resposta de Sebastian era sempre a mesma:
- Não sou eu quem autoriza?
- E quem é?
- Jhaver.
- E ele autoriza?
- Vou perguntar...
Sebastian perguntou, perguntou, perguntou. Perguntou sobre esse e outros assuntos. O problema é que ao longo do último ano não chegou resposta algum do anjo negro. Jhaver estava incomunicável. E o pior, incomunicável por vontade própria e desconhecida.
Observação do autor: Estamos quase no fim. Falta pouco. Obrigado pela sua atenção!
Comentários
Nenhum comentário.
Escreva um comentário
Participe de um diálogo comigo e com outros leitores. Não faça comentários que não tenham relação com este texto ou que contenha conteúdo calunioso, difamatório, injurioso, racista, de incitação à violência ou a qualquer ilegalidade. Eu me resguardo no direito de remover comentários que não respeitem isto.
Agradeço sua participação e colaboração.