23/02/2011 - Capítulo 64
Culpado ou inocente?O dia amanhece rodando em torno de um só assunto: Jhaver. Pelas ruas de Buenos Aires, pelos lares da Argentina, pelos bares do mundo a questão é uma só: será que ele existe mesmo?
Já não importa mais se Sebastian é culpado ou inocente, o que se quer saber é como ficará o planeta depois da aparição pública de um espírito que se diz um ex-castigador. Serão as religiões mentirosas e o modo de vida em curso uma grande afronta aos planos divinos?
Agora não é só um acusado de assassinato quem leva a existência de Jhaver a uma sociedade conservadora, que insiste em acreditar que estamos sozinhos no universo e que não há castigos por parte do todo poderoso.
O fato de muitas pessoas, presentes durante o “acontecimento do milênio”, como está sendo chamado o caso, darem, maravilhadas ou assustadas, depoimentos do que viram e ouviram solidifica a até então hipotética existência do anjo negro.
Sem se deixar levar pela convulsão mundial, o juiz prefere não comentar o ocorrido e seguir os trabalhos. Assim, chama o último depoente da listagem. E ao contrário do anterior, agora se trata de ouvir o depoimento de alguém vivo.
Reaparece o sacristão, que estava sendo mantido em sigilo e recebendo proteção policial. Tenso e com grandes olheiras, começa dizendo que Sebastian matou monsenhor Mariano de forma fria e calculada, por vingança.
Com engenhosidade, amarra uma série de argumentos para incriminar o devoto de São Miguel que estava proibido, pelo próprio sacerdote, de freqüentar a igreja. Reproduz discussões, relembra atos ofensivos. Fala pausadamente, atento às minúcias.
Traz a público os supostos comentários feitos pelo padre sobre o fiel, nos quais ele admitia temer retaliações mais incisivas por parte de Sebastian.
Vem munido de vídeos que ilustram, mesmo com imagens sem foco, discussões entre o acusado e a vítima. Diz não haver imagens reais do assassinato, pois, segundo ele, ao perceber que estava sendo filmado o acusado destruiu as câmeras da sacristia.
Para mexer com a emoção das pessoas, traz fotografias tiradas por ele mesmo do padre morto. Nas fotos a imagem da correntinha de Sebastian junto ao corpo, mais precisamente enrolada na mão do padre, como se numa luta corporal o sacerdote a tivesse arrancado do pescoço do fiel.
As falas vão enervando o público.
Depois de quase uma hora de falação, surge um perfume súbito. Um perfume forte e amadeirado que rapidamente infesta a sala.
O perfume inebria e cala fundo.
O sacristão respira fundo e, contradizendo seu comportamento, se revolta, chora, muda o tom de voz e anuncia que não pode continuar mentindo, que sua consciência está pesando e confessa que matou o padre, com suas próprias mãos, por ciúme e por dinheiro.
Os presentes gritam:
- É Jhaver, é Jhaver.
Para eles, o ex-castigador voltou para dar cumprimento à profecia que tinha feito.
- Jhaver voltou para fazê-lo falar a verdade! – comenta emocionada uma mulher que traz colares de santo em seu pescoço.
Caçadores de fenômenos estranhos alertam que seus aparelhos detectam uma intensidade magnética muito superior ao normal, semelhante à medida durante o período em que o anjo negro ocupou o corpo de Susana.
A aparelhagem tem verificado alterações do campo magnético desde o início do julgamento, mas há momentos de pico capazes de enlouquecer os marcadores.
O juiz pede silêncio e o sacristão dá prosseguimento à guinada do seu depoimento.
De pronto, revela que ouvia vozes que alimentavam seu desejo de se livrar do monsenhor. Embora quisesse muito isso nunca teve coragem suficiente para matar alguém. Precisava de um empurrão a mais. Isso aconteceu quando recebeu uma oferta tentadora e um plano perfeito. O sacristão se livraria daquele padre velho e rabugento que lhe enchia de serviço e reclamações. Ganharia um bom dinheiro por isso e se livraria da culpa, que recairia totalmente sobre Sebastian.
Foi ele quem colocou a corrente nas mãos do corpo do padre e quebrou as câmeras de segurança do local. Usou luvas descartáveis o tempo todo, as quais ele queimou logo em seguida. Com cuidado, forjou o cenário para incriminar o genro de Valentina.
Num primeiro momento, a morte do padre trouxe-lhe alívio e o domínio das contas da igreja. O fato de padre Mariano querer inspecionar a contabilidade impedia que o sacristão se beneficiasse do dinheiro das doações. Confessa que desviou verba da reforma da igreja e que vendeu algumas imagens sacras originais, trocando-as por réplicas perfeitas.
Mas, nos momentos que se seguiram, teve crises de arrependimento. Embora calculasse todos os seus atos, uma coisa não saiu como esperada. No momento que ia atirar, monsenhor Mariano virou-se para ele e disse:
- Por quê?
Um “por que” que ele não soube responder na hora e que até hoje lhe atordoa.
Pensou em voltar atrás. Mas não podia. Havia ido longe demais para voltar. Disparou cada tiro testemunhando as expressões de dor do padre. E não fala só da dor física, mas da dor da traição.
O sacristão confesso, admite que fraquejou e chorou e pediu perdão diante do corpo do padre pelo que acabara de fazer. Mas, àquela altura, era tarde demais. Desde então, se vê atormentado por fantasmas. Nunca mais conseguiu ter tranqüilidade ou paz de espírito.
Além de ter admitido sua responsabilidade no assassinato de monsenhor Mariano e a inocência de Sebastian, o sacristão se culpou por tantos outros crimes. Conforme previsto por Jhaver, o último depoimento, uma confissão pública, mudou os rumos daquele julgamento.
E quem deu o empurrão para que ele executasse o serviço?
Quem?
O sacristão é pressionado a dizer o nome do mandante. Talvez não tivesse coragem para tanto. Porém, depois de algumas negativas, entrega quem lhe encomendou o serviço.
Alicia.
Foi ela quem o incentivou moral e financeiramente. Foi ela quem informou ao sacristão todos os passos de Sebastian e lhe levou a corrente com pingente de São Miguel. Foi ela quem, até o momento, havia comprado seu silêncio.
Alicia, de principal acusadora, passa a ser acusada. E ela, voltando à tribuna, inexplicavelmente, confessa a quem quiser ouvir sua parcela de culpa. No entanto, esclarece que não pensou ou agiu sozinha – foi instruída por um homem com sotaque francês, chamado Perrot.
- Mas quem é Perrot? - pergunta o juiz.
- Um amigo. Alguém que me dá coragem, que me incentiva, que não me deixa fraquejar.
- E onde ele está?
- Não sei.
- E como fala com ele?
- Na verdade, é mais ele quem fala comigo.
- E o que ele fala com a senhora?
- Muitas coisas.
- Que tipo de coisas.
- Que eu sou bonita e que mereço mais.
- Vou ter que ouvi-lo.
- Impossível. Ele só aparece e fala quando quer.
- Como assim?
- Não é quando eu quero, mas quando ele quer.
- Ele está aqui?
- Eu ainda não o vi, mas é possível. Ele aparece quando menos se espera.
- E como ele é?
- Cada dia ele aparece de um jeito. Num dia que está com o cabelo loiro e noutro, castanho escuro. Ora tem a silhueta esbelta, ora tem sobrepeso. Em algumas ocasiões vem muito rápido, como um flash, em outras demora tanto que parece me habitar. Na maioria das vezes vem durante a noite. No mesmo instante que parece nítido se torna nebuloso.
- A senhora está em seu juízo perfeito? – pergunta o meritíssimo.
- Tem certeza de que deseja continuar? – indaga o promotor.
- Deixem-me em paz! No começo eu tinha medo de dormir porque era só pegar no sono que Perrot me acordava. Mas ele me provou que só queria me ajudar me contando alguns segredos e me guiando. Fez-me tão bem que eu passei a buscá-lo mais e mais a cada novo dia.
- Você diz que ele é seu amigo e não sabe seu endereço, sua profissão, seu rosto, seu nome completo? – quer saber o juiz.
Alicia só balança a cabeça confirmando tudo.
O juiz pergunta então se Sebastian conhece esse indivíduo.
- Conheço sim, Meritíssimo. Trata-se de um castigador que tenta, a todo custo, assumir o posto que um dia pertenceu a Jhaver. Em sua última vida, foi um francês. Morreu lutando na Oitava Cruzada, em 1270. Caiu defendendo os interesses do rei Luis IX, em Túnis, tentando converter um sultão ao Cristianismo.
- Quer me dizer que Perrot é mais um espírito?
- Um espírito que, ao contrário de Jhaver, continua sendo parte do Conselho de Castigadores.
- Chega! Vamos acabar logo com esse julgamento. Já há espíritos demais nessa história e eu estou aqui para fazer cumprir a lei dos que vivem neste mundo. Não tenho subsídios nem autoridade suficiente para julgar um espírito ou a influência de um espírito em um crime – explica o juiz.
Porém, Alicia insiste:
- Perrot é inocente. Ele só fez me ajudar. Na verdade, a culpa de tudo é da minha irmã. Desde pequena, ela sempre teve e foi tudo o que queria. Estou sendo presa, mas não me arrependo de nada. Não vou pedir perdão a ela ou misericórdia a quem quer que seja. E quer saber mais: estou muito feliz, pois agora Malena será obrigada a conviver com meu filho, que está cada vez mais parecido com seu ex-marido. Um castigo justo para quem tanto me castigou.
Antes de deixar a tribuna, algemada e acompanhada por dois agentes, chora, ri e ameaça:
- Eu não vou ficar presa para sempre. E antes mesmo que eu saia, Hernandez irá aparecer e vingar a minha prisão. Perrot me contou.
Sebastian sente um arrepio ruim diante da declaração, mas logo é acometido pela sensação de que acabou.
- Os trabalhos estão encerrados – declara o juiz.
Três dias depois de iniciado o julgamento, o júri se reúne e dá o veredicto final: Sebastian é declarado inocente. Inocente de todas as acusações proferidas contra ele. A promotoria avisa que não vai recorrer.
Ele beija a esposa. Abraça amigos e familiares. Externa sua gratidão aos espíritos de luz em forma de oração.
Agora, seria encaminhado a um hospital para exames e tratamentos. O jejum fora longo. Embora ele se sentisse limpo por dentro, leve e amado pela luz que o nutria espiritualmente.
Em meio a flashes e microfones, Sebastian é carregado por um grupo de pessoas como uma espécie de santo, de herói, de mártir. Porém, ainda há uma multidão que não acredita no que ele prega. Ele sabe disso. Mas tem consciência também que a semente que plantou em meio a tantas pedras começa a brotar.
Aparentemente, Sebastian caminha para viver tempos de paz e bem-aventurança. Aparentemente, pois enquanto houver um encarnado no caminho certo haverá sempre um umbralino se desdobrando em suas camadas trevosas para desencaminhá-lo.
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