Daniel Campos

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18/02/2011 - Capítulo 63

Com vocês, Jhaver

Em meio ao grande alvoroço criado em razão de sua presença, Jhaver emana vibrações de tranqüilidade e um a um todos vão se calando para ouvir o que ele tem a dizer. Isto é, quase todos. Fazendo uso de culpas e desculpas, o promotor exige que o juiz acabe com aquilo que julga ser um teatro barato.

Do alto de sua cadeira, o meritíssimo acena que irá acatar o pedido, mas antes de concretizar seu pensamento há uma sucessão de fenômenos que nem ele nem ninguém conseguem entender ou explicar.

As luzes da sala piscam, algumas até queimam devido à alteração de energia, e há um pequeno tremor de terra. A platéia, ensandecida, entre o medo e a curiosidade, pressiona para que Jhaver tenha direito à fala. O juiz repensa o caso e surpreendentemente permite a manifestação.

- Não posso me demorar. As energias aqui concentradas não são favoráveis a minha presença. Estou usando, temporariamente, o corpo de Susana para poder me comunicar com vocês, encarnados. Preciso de um veículo físico para fazer isso uma vez que a humanidade ainda não se comunica por meio de telepatia. Ao contrário do que você está pensando - aponta para a mãe de Susana - sua filha está bem e não sofrerá nada.

A mulher estanca o choro do temor de ter perdido a filha, mais por espanto do que por aceitar o que aquele ser acabara de lhe dizer.

Então, Jhaver conversa só com ela, bloqueando todos os outros que estão ali naquele espaço:

- Não há o que temer, mas muito do que se orgulhar. Sua filha é um espírito bastante evoluído, que veio a terra imbuída de uma grande missão. Se não quiser ser castigada deixa-a cumprir sua missão. Antes de ser sua filha, Susana é filha de um desejo, de um projeto, de um plano superior. Se não quiser caminhar por uma estrada de sofrimento e abandono não contrarie os planos divinos.

Dito isso, volta a se comunicar com os demais:

- Meu nome é Jhaver. Como sabem, sou um espírito de luz e já fui um castigador. Até agora, tudo o que Sebastian falou sobre mim e sobre a existência de um Deus que ama e castiga com a mesma intensidade é verdadeiro. Deus ama, mas também pune, admoesta, repreende, adverte, corrige. É assim que mantém o equilíbrio dos mundos.

- Tenho absoluta certeza de que a maioria das pessoas que estão aqui, diante de mim, não acredita na mão pesada de Deus porque não lhe é conveniente. Só de olhar nos olhos de cada um posso saber com exatidão a quantidade e o teor dos pecados cometidos e o receio de terem de pagar por eles.

- Portanto, o que se julga aqui hoje não é o fato de um homem acreditar na existência de vida após a morte, tampouco nas criaturas que povoam dimensões superiores, equivalentes ou inferiores à terrena. O que se quer condenar aqui, agora, de forma equivocada e sumária, é a idéia de que o criador não castiga, apenas afaga a sua criatura. Uma condenação que consolidaria o status quo trazendo uma pseudo paz exterior e interior.

- Ora, Deus criou o homem para que ele pudesse lhe adorar e servir e não o contrário. Para manter o homem obediente, Deus criou uma série de normas. Qual é o primeiro mandamento? Amar a Deus sobre todas as coisas. Mais do que amar, Deus quer ser amado. Os estudiosos das Escrituras sabem que a mão castigadora de Deus sempre existiu e que ela foi recentemente esquecida por leigos e sacerdotes para que o mundo pudesse se auto-absolver e pecar sem culpa.

- Um deus absolutamente misericordioso serve apenas aos interesses mundanos, que são ditados e governados por aqueles que detêm o poder. Só que prestem atenção no que vou dizer: as criaturas podem mudar ao longo do tempo, Deus não. Ele é o mesmo desde a época da criação. A humanidade é que, desde Adão e Eva, vem se transformando para tentar alcançá-lo. Uma tentativa em vão, já que só há um caminho que leva até Ele: o caminho da evolução espiritual.

- Um caminho sem glamour, sem fama, sem prazer imediato. Um caminho feito de uma estrada longa, de muitas dificuldades e provas. Um caminho solitário, por mais que se esteja acompanhado ou ligado a alguém. Um caminho singelo, mas extremamente árduo e extenuante. Um caminho de fé e resignação, que dá sustento e provento aos seus caminhantes à medida do que é necessário e merecido a cada um deles.

- Não adianta tentar achar um atalho ou uma brecha que encurte esse caminho. Não adianta atribuir o peso da sua viagem às costas de outra pessoa para facilitar caminho. Não adianta pavimentar seu caminho de ouro ou pedras preciosas. Não adianta sentar e esperar que anjos venham lhe carregar. Não adianta voltar para trás ou escolher um caminho diferente, mais aprazível e conveniente. O caminho de Deus é um só e pode ser encontrado dentro de cada um de seus filhos e filhas.

- Quanto mais alguém se afasta deste caminho mais será castigado.

- Se Deus é absoluto e tão poderoso assim, pra que ele precisaria de castigadores? – Pergunta um ateu.

- Os castigadores são servos de Deus, assim como os samaritanos e os anjos. Todos nós temos nossas funções, por mais distintas que sejam uma das outras, no que compete à manutenção dos mundos.

- E se Deus criou a lei de ação e reação pra que a necessidade dos castigadores? – Questiona um espírita kardecista.

- Antes de responder, quero dizer que essa e muitas outras perguntas serão respondidas no livro que Sebastian está finalizando. O Conselho dos Castigadores é o guardião da lei de causa e efeito, também conhecida como ação e reação. Essa lei universal, assim como as leis terrenas, para serem validadas, precisa de agentes executores, no caso, os castigadores.

- Deixem de alimentar falsas ilusões, meus irmãos. Garanto que esse aí, que se diz espírito, não consegue citar uma passagem bíblica que comprove a existência deste Deus cruel e avassalador? – desafia um pastor que está na terceira fila.

- Deus não é cruel, é justo. Agora, a justiça pode sim ser cruel. Quanto à passagem, no livro de Deuteronômio encontramos uma afirmação peremptória de Deus: “Vede agora que eu, eu o sou, e mais nenhum deus há além de mim; eu mato, e eu faço viver: eu firo, e eu saro, e ninguém há que escape da minha mão”.

- Mas isso pode ter várias interpretações – retruca o pastor.

- Sim. Assim como pode ser interpretado de várias formas o fato do homem ter fragmentado a célula da Igreja que Jesus deixou à humanidade em dezenas de outras igrejas.

O pastor se cala e se encolhe dentro de seu terno azul escuro.

- Para aqueles que só acreditam no que está escrito, as Escrituras sagradas dizem que Deus irá castigar até mesmo quem disser que ele não castiga.

- Isso é uma heresia - comenta baixinho uma líder carismática.

- Heresia é fazer juízo daquilo que não se conhece. O livro de Sofonias é bem claro: “E há de ser que, naquele tempo, esquadrinharei a Jerusalém com lanternas, e castigarei os homens que se espessam como a borra do vinho, que dizem no seu coração: O Senhor não faz um bem nem faz um mal”. As Escrituras afirmam: Deus castiga. Não há o que se discutir. Sebastian não é o primeiro e nem será o último a afirmar a existência de um Pai Castigador, de Gênesis ao Apocalipse.

- Se é um anjo do senhor, poderá nos dizer com precisão quando será o Apocalipse? Qual a data do Armageddon? – pergunta um fiel de uma igreja evangélica.

- Em primeiro lugar, não estou aqui para falar mais do que vocês precisam e estão preparados para ouvir neste momento. Em segundo, o Apocalipse acontece todos os dias, a cada hora, a cada segundo dentro de cada um de vocês. Quantos aqui se auto-condenam sem encontrar defesa para seus atos? Quantos aqui não conseguem nem mesmo perdoar a si próprio? Quantos aqui acreditam cegamente que Deus irá absolver todo e qualquer pecado cometido?

Há quem trema, quem abaixe a cabeça, quem sue frio.

- Como podem esperar que Deus desça dos céus para lhes salvar do juízo final se vocês se recusam a conhecer o Deus verdadeiro. Assim como a igreja, que durante séculos tem negado à humanidade muitas verdades e calado muitos profetas, vocês fazem desaprovar Sebastian, que, por vários motivos, escolhi para trazer ao mundo um clarão de conhecimento.

- Como pode ter confiado tal missão a um pecador? – pergunta um homem vestido com turbante.

- As acusações contra o réu não procedem. Eu apareci em sua vida para castigá-lo também pelas muitas acusações que foram ditas aqui e outras tantas mais que estão além da justiça que conhecem. No entanto, percebi que estava enganado. E, pela primeira vez em meu exercício de castigador, voltei atrás. Não foi fácil tomar essa decisão e nem suportar as conseqüências trazidas por ela. Mas eu precisava me manter firme no caminho que leva a Deus. E Deus não é apenas a materialização de uma força suprema, uma criatura com uma coroa triangular, cajado e cabelos brancos, mas o ápice de um estágio evolutivo.

- Buscando a evolução permanente, reconheci o meu erro e estou diante de vocês para tentar desfazer muito do que eu provoquei. Sebastian é inocente e o fato dele ter chegado até aqui é uma prova de altruísmo. Eu sei o quanto ele tem sofrido porque tenta passar para vocês a imagem de um Deus que exige constantes sacrifícios e inúmeras doações. As críticas que vocês fizeram até então e o papel de acusadores que desempenharam tão bem contribuíram para Sebastian encontrar sua verdadeira fé e seu papel no mundo.

- Agora, cabe a vocês, com base no livre arbítrio, tomar uma decisão: vão passar o resto de suas vidas atirando pedras contra ele ou vão tomar seus passos como inspiração para darem sentido e direção as suas caminhadas?

A voz que sai do corpo de Susana não é de criança. É uma voz mais grave. Só que ao contrário das vozes fantasmagóricas, distorcidas dos filmes, é uma voz limpa. Uma voz empostada e de profundidade capaz de ultrapassar barreiras físicas e psicológicas. Enquanto alguns acreditam, em diferentes níveis de crença, outros dizem se tratar de uma armação. Mas como explicar o conteúdo da fala, o emprego de palavras difíceis e a mudança visual nas expressões faciais de Susana?

Ciente dos pensamentos de descrença, Jhaver dá um recado antes de se retirar:

- Como desencarnado que sou não tenho sobrenome ou filiação, tampouco números que me identifiquem junto a registros civis. Para evitar transtornos, também não vou dizer onde estão enterrados os restos mortais do último corpo que utilizei quando passei por esse mundo. Embora eu não precise comprovar se existo ou não de verdade, afirmo que o próximo depoimento irá demonstrar a existência e a influência que o mundo espiritual tem sobre a terra.

- Se existe de verdade não se esconda no corpo de uma criança. Manifeste-se diante de nós com o seu próprio corpo – grita um homem.

- Eu não tenho corpo há muitos anos. Tenho perispírito. Só os puros de coração e de elevada mediunidade, como Susana, podem me ver. E, como disse anteriormente, vocês não estão preparados para me conhecer, tampouco são merecedores disso. No entanto, minha presença no meio de vocês se fez necessária para que não se fizesse um grande engano e também para que a humanidade pudesse corrigir seu rumo no que diz respeito ao modo de se exercer a fé.

- Mas nós queremos lhe ver – brada agora uma mulher.

- Ao contrário de se satisfazerem em terem escutado o que disse, coisa que muitos não tiveram oportunidade, querem mais. E de nada adiantaria me materializar aqui diante de vocês se me esperam ver galopando em um cavalo alado ou vestindo um manto de estrelas reluzentes. Ninguém quer que eu traga o chicote que utilizei durante séculos e demonstre seu poder em alguns voluntários? Os séculos passam e a humanidade continua movida pela descrença.

- Lembram de Tomé? Duvidando de que aquele que estava em sua frente era Jesus reencarnado pediu para colocar suas mãos nas chagas do filho de Deus. O que o discípulo encontrou quando tocou as feridas vocês sabem, o que desconhecem é que ele ficou cego por um tempo como castigo de ter duvidado. O Umbral está cheio de cegos de olhos e coração.

- Por tudo o que já disse, o que se passou aqui não pode ser registrado. Nenhuma máquina conseguiu captar em áudio ou vídeo nada do que aconteceu aqui. Portanto, dêem por satisfeitos com o que testemunharam, sintam-se escolhidos, aprendam com essa experiência e se transformem em seres humanos melhores, sendo mensageiros do Deus que adormece em cada um de vocês. Um Deus que ama e por amor, castiga.

- Lehitra’ot. *

Dito isso, Susana fica fria, fecha os olhos, tem um desmaio súbito e cai. A equipe médica a socorre. O barulho fica insuportável. A menina volta a si sem dores ou conseqüência alguma do ocorrido. Volta a ter sua voz de criança e jura não se lembrar de nada do que passou. Diz apenas que dormiu e que foi levada por anjos para um lugar muito bonito. Um sonho muito bom, segundo ela.

O juiz suspende a sessão por tempo indeterminado, ordenando que o réu, as testemunhas e os integrantes do júri se dirijam às acomodações que lhes foram reservadas. Desde que o julgamento começou não podem se comunicar com ninguém tampouco deixar o tribunal.

O promotor pede para o juiz apurar com rigidez o que aconteceu e não levar em conta nada daquela teatralização. Diz que podem estar sendo enganados por efeitos de som e luz. Argumenta ainda que, embora jovem, Susana pode ter interpretado uma personagem - há muitas crianças fazendo novela por aí – diz o promotor. Mas as falas do homem que tenta a todo custo condenar Sebastian vão se perdendo no contexto e na agitação dos populares.

Embora seja pouco tempo para digerir tudo aquilo, é o suficiente para sites bombardearem a aparição de Jhaver. Enquanto especialistas tentam aprofundar o assunto, a mídia explora o depoimento de quem acompanhou tudo de perto. São declarações de pessoas ainda em choque com o que viram e ouviram. Pessoas de diferentes classes, credos, cores, sexos, origens falando sobre Jhaver. É como se aquele grupo de pessoas, realmente, tivesse sido escolhido a dedo.

Fervilham diálogos e reflexões noite afora.

Talvez nada do que ainda viesse a acontecer no julgamento superasse a última cena.

Buenos Aires não dorme e mesmo assim tem pesadelos com Jhaver.

Observação do autor: * Adeus (em hebraico)


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