10/01/2011 - Capítulo 61
Eis o julgamentoNaquela tarde de terça-feira, ao menos de forma temporária, o centro do mundo muda-se para Buenos Aires. Olhares apreensivos. Lentes angulares. Microfones nervosos. Há uma conversão de pensamentos e atenções para a cidade do tango. O nível de tensão extrapola a normalidade. Quando as primeiras ondas do tsunami devastam a costa Argentina, inicia-se o julgamento de Sebastian.
Gritos e correria. Ninguém quer saber se aquele tsunami resulta de fenômenos metrológicos ou erupções vulcânicas. Querem é saber se aquilo tudo tem ou não o dedo de Jhaver. O fator científico é rendido pela comoção espiritual. Tanto que o tribunal está com todas as cadeiras ocupadas. Isso sem falar da multidão que se aglomera do lado de fora. Júri popular. Tudo é grandioso, em matéria de pessoas presentes, testemunhas, repórteres e acusações.
O promotor que sempre gostou de transformar seus julgamentos em show, prova do próprio remédio. A leitura dos autos dos processos parece não ter mais fim. Tudo é muito demorado e detalhado. Sebatian está vestido com uma roupa simples, que em nada lembra os trajes utilizados em seus tempos de promotor. A promessa dele se cumpre e realmente não há advogado de defesa presente. Ao menos não advogados encarnados.
Um homem que se diz caçador de espíritos teve de ser tirado do tribunal após gritar que um aparelho que levava a tiracolo captou uma freqüência muito elevada de ectoplasmas.
Embora o departamento médico desse sinal verde, existe uma forte especulação se ele irá ou não suportar a pressão do julgamento, uma vez que está em jejum há uma quantidade de dias que foge da realidade humana.
Linha após linha, uma série de denúncias lhe alveja por meio de palavras a queima-roupa. E ainda há quem lá fora o culpasse por crimes que não constam nos autos, como o tsunami que se debate contra a costa, destruindo construções litorâneas e a paisagem. Barricadas foram erguidas para evitar o avanço das ondas, mas o mar surge com uma força impensada, impossível de conter. E muitos já imaginam as ondas do mar ricocheteando como chicotadas de Jhaver. A idéia de um Deus que ama, mas que também castiga já não parece tão irreal.
Longe da fúria das águas, Sebastian é acusado de matar monsenhor Mariano. Não houve flagrante, mas evidências e uma prova praticamente irrefutável. Uma medalha de São Miguel Arcanjo foi encontrada junto ao corpo do padre. A perícia constatou que a medalha pertencia ao promotor. Além do que há de se considerar que o acusado ameaçou o padre momentos antes do assassinato e até então não apresentou álibi.
Essa é a acusação principal, mas há muitas outras em torno desse julgamento atípico. Na verdade, foram abertas várias exceções nos ritos para que o futuro de Sebastian fosse decidido de uma só vez, evitando maiores tumultos. Embora não pudessem calcular o que sua condenação ou soltura poderiam causar no seio da sociedade, as autoridades tinham plena convicção de que a situação não poderia permanecer como está.
Sebastian é acusado de receber propina de políticos da base governista para fazer vistas grossas a alguns procedimentos ilegais. Acusado de coagir testemunhas, de intimidar réus e de manipular provas durante sua carreira de promotor. Acusado de abuso de autoridade dentro e fora do ambiente de trabalho. Acusado de ferir a seriedade da instituição da qual é servidor.
Acusado de violentar cunhada, empregada e enteada. Acusado de participar da morte do médium Gastón. Acusado de seqüestrar os enteados. Acusado de abandono de incapaz. Acusado de fazer parte de seita e ofender a religiosidade da população. Acusado de adultério. Acusado de forçar a mulher a fazer um aborto. Acusado de calúnia e difamação. Acusado de engravidar a enteada.
A maioria das acusações foi feita pela sua cunhada, Alicia, uma das testemunhas-chave do julgamento. No entanto, há denúncias feitas também por outros promotores, por supostas vítimas da atuação profissional de Sebastian, por religiosos, celebridades e populares.
O clima está tenso. O julgamento avança por horas. O acusado sente a presença de Jhaver e de outros amigos espirituais. Conforta-se e se fortalece com isso. Reza muito. Mantém-se o máximo possível em oração e silêncio. A leitura do processo causa aflição e bocejos na platéia. Da lista de testemunhas arroladas, a primeira a aparecer no corpo do tribunal é Alicia.
Entra, aos olhos dos sensitivos, com uma sombra escura e espessa em torno de seu corpo.
Ela vai à tribuna como noiva que entra na igreja à procura do altar. Lá chora e conta diversas coisas negativas sobre o cunhado. O teatro mexe com o público. Diz que ele sempre a assediou, que a chantageou, que a ameaçou. Conta que, em certa ocasião, colocou uma faca no pescoço de seu filho com o pretexto de que se não fosse para cama com ele mataria a criança mais dia menos dia. E ela diz que foi obrigada a se prostituir com Sebastian por diversas vezes. Vai falando, falando, falando até que acontece algo estranho.
Ela se engasga, tosse e tem calafrios. Parece que tem algo na garganta.
Mesmo zonza, Alicia avança e diz que ele bate na mulher, que é violento com as crianças e que acredita que o filho de sua sobrinha Micaela é de Sebastian, pois ele também a violentou. Diz que foi ele quem matou Diego, seu outro sobrinho, pois o garoto tinha visto sua mãe sendo açoitada por aquele homem sem limites.
A voz falha de tanto tossir e engasgar. Ela vai ficando vermelha, sem ar.
Também conta que sua mãe foi humilhada várias vezes pelo genro, sendo obrigada a passar dias e dias trancada no quarto em razão dos castigos impostos. Chegou a dizer com lágrimas que vive até hoje o inferno de não saber se seu filho é de seu ex-marido ou de Sebastian. Afirmou que ela se separou em razão de seu então esposo descobrir o que o cunhado fazia com ela. Não suportou e a deixou.
Já quase afônica diante da tosse sem fim que a faz ter dores nas costas e suar frio, ela cambaleia.
O juiz perguntou o que estava acontecendo e quem respondeu foi Sebastian:
- Vossa Excelência Meritíssima nunca ouviu dizer que excesso de mentira causa danos à saúde.
A platéia ri. O juiz pede silêncio. Indignada, ela não se contém de ódio e completa seu depoimento dizendo que ouviu Sebastian ao telefone dizendo a alguém que matou o padre.
O advogado de acusação foi ao encontro de Sebastian e perguntou de uma só vez:
- Como você se defende dessas acusações?
- Não há do que se defender?
- Como assim?
- A maioria das pessoas que ela citou nesse depoimento irá subir a essa tribuna e me inocentar. A única pessoa que não poderá fazer isso será seu filho que realmente não sabe quem é o pai dele, embora tenha convivido bastante com ele. Creio que o pai dele não irá aparecer aqui também porque é foragido da polícia, o homem quem matou Gastón, o qual eu tentei defender até o último momento de sua vida. Uma pessoa muito iluminada, que me ajudou e continua ajudando. O pai do filho de Alicia é o seu grande amor, seu amante de muitos anos, Hernandes.
Alicia se desespera e deixa escapar sem querer:
- Como você sabe disso, eu jamais contei para ninguém?
- Se eu contar que foi um espírito quem me contou você acredita?
Ao mesmo tempo em que o público se alvoroça com o fato de um espírito ter desmentido Alicia, ela desce da tribuna e parte para cima do cunhado com agressões físicas e verbais.
Sebastian, encarregado de fazer a própria defesa, diz para o júri que não se pode confiar em uma pessoa que mente de forma tão descarada. Que ela sempre quis tudo da irmã. A mãe, os filhos, os maridos, a casa, o trabalho, o dinheiro, o prestígio. Diz que ela o assediou por diversas vezes, mas que ele nunca teve ou quis ter algo com ela. É fiel ao seu casamento e ama sua mulher de forma tamanha. Quanto às outras denúncias, tem fé de que elas serão desmentidas ao longo do julgamento.
Depois de um intervalo, Micaela entra e diz que no início odiava Sebastian. Mas que depois aprendeu a gostar dele. Que ele jamais abusou dela. Que lhe deu muita força nos momentos mais difíceis. Diz que o filho que espera é de uma pessoa que não quis assumi-los. Diz que em razão de todos os problemas sempre foi uma menina rebelde e mimada. Que entrou nas drogas. Que tentou se matar e abortar a criança. Mas que se hoje ela estava ali, viva e ansiosa para ser mãe, devia isso a Sebastian que sempre a amparou como o pai que nunca teve.
Ele sorri um sorriso leve. Ela pede para que ele não demore demais, pois quer que ele a leve para a maternidade junto com sua mãe.
Tomás é o próximo. Ele diz que Sebastian foi a única pessoa em que teve segurança para contar que ouve vozes e vê pessoas que já morreram. Diz que ele sempre o incentiva e que seria incapaz de matar uma pessoa. Que aprendeu muito no tempo em que morou sozinho com ele. E que o padrasto, ao contrário do que dizem, não seqüestrou ele e sua irmã. Foram morar com ele por vontade própria em razão dos maus-tratos e loucuras da tia, que só se fazia de boa diante da mãe e da avó.
Apimentando o julgamento, pede para que o padrasto se mantenha firme pois além de Jhaver há muitos outros espíritos ali, ao seu lado.
Movimentação. Falatório. O juiz precisa interromper o julgamento por meia hora. Ameaça continuar a sessão sem a presença do público. Os presentes protestam. Um homem corre pelos corredores, rompe o cerco e consegue se aproximar de Sebastian. Diz que precisa saber onde está seu filho que desapareceu há dois anos. Quer saber se está vivo ou morto. Os seguranças o tiram dali. O clima ganha contornos de tensão cada vez mais grosseiros.
Prosseguindo com os depoimentos, Celeste entra sob acusação de ser uma das amantes de Sebastian. Mais nervosa do que de costume, informa que eles se conhecem há pouco e que se aproximaram depois da morte de seu pai, Gastón. Diz que ficou bastante mexida com esse acontecimento. Confessa que sentiu atração por ele, mas que jamais ultrapassaram as barreiras da amizade. Que ele sempre a respeitou e que jamais a iludiu. Diz que saiu da cidade não para esconder um caso amoroso com ele, mas para colocar sua cabeça no lugar e dar cumprimento a sua missão. Mostra as fotos do trabalho que vem realizado com crianças carentes.
Conta que seu pai morreu porque havia cumprido rigorosamente sua missão de ser uma espécie de anjo da guarda encarnado de Sebastian. Que está vivo em outro plano, recuperando-se das feridas ocasionadas pela vida terrena e que, em breve, poderá continuar sua evolução. Diz que a certeza maior de que não foi o réu quem o matou não está no depoimento das testemunhas presentes no dia do crime, mas na harmonia existente entre o espírito de seu pai e Sebastian.
Celeste tira o papel que recobre uma tela e mostra ao público. É mais uma de suas pinturas mediúnicas. O quadro revela seu pai num banco de jardim e Sebastian ao seu lado. Segundo ela, essa cena ocorreu em outro plano num passado recente.
Novamente os ânimos se afloram e o juiz se aborrece. O promotor do caso se desespera e pede para que o quadro não seja levado em conta, tampouco o depoimento de Celeste, pois não há como comprová-los. O júri se divide. Os depoimentos continuam.
Valentina adentra ao tribunal. Nega as acusações feitas por Alicia. Diz que o genro jamais a castigou. Que, na verdade, castigou-se por um tempo ao não acreditar no espiritismo. Mas que jamais a humilhou ou a maltratou por conta disso. Diz também serem infundadas as demais acusações levantadas contra ele.
Madre Ruth entra no recinto e revela que Sebastian é uma pessoa de gênio muito forte. Que sempre fez questão de manter a enteada em seu colégio. Que se surpreendeu com esse homem que acredita em Deus castigador e espíritos. Que por isso tem certeza que ele está mentindo somente para tirar proveito da situação. Ou mente agora, ou mentiu antes ou mentiu sempre.
Ninguém muda da noite para o dia assim, revela espantada. Também comenta que ele ficou muito aborrecido com a decisão de monsenhor Mariano de tê-lo afastado da igreja. Ela disse temer que ele também a matasse depois que ela expulsou a enteada do colégio. Diz que não o conhece e que, portanto, acredita que ele é capaz de qualquer coisa. No entanto, relata, meio a contragosto, que ele jamais a ameaçou ou coisa parecida.
Eleonora, uma beata, diz que viu Sebastian discutindo diversas vezes com monsenhor Mariano. Que ele alterava a voz, que queria quebrar a igreja, a imagem de São Miguel, que ameaçou acabar com o sacerdote. No entanto, ao mesmo tempo, diz que sempre foi testemunha da fé do promotor. Uma fé que servia de exemplo para qualquer um. E admite que o padre foi um pouco longe demais ao proibi-lo de freqüentar a igreja. E que isso pode ter provocado o assassinato.
Um dos réus prejudicados por Sebastian, um ex-juiz, cassado por comprovação de corrupção diz que o promotor fazia parte de seu esquema. Mas não consegue provas e se enrola todo no depoimento, contradizendo-se várias vezes.
Um colega de promotoria também o acusa, mas no meio de sua fala desiste e pede para que sua denúncia seja desconsiderada. E mais, pede desculpas a Sebastian justificando que sempre teve inveja dele. O mesmo se repete com mais três testemunhas. Parece haver algo de sobrenatural naquela tribuna, pois as pessoas chegam ali e não conseguem levar suas mentiras adiante.
No entanto ainda há muitas testemunhas pela frente. Mas já é possível fazer um balanço.
Havia quem tratasse os fenômenos estranhos daquele dia como presença de espíritos. Porém, muitos falavam que até agora Jhaver não se mostrou capaz de milagre algum para ajudar seu discípulo. Ao final do primeiro dia de julgamento todos se mostram um tanto decepcionados, afinal esperavam uma aparição de Jhaver ou de algum outro espírito.
O tsunami, já previsto, foi antecipado por Perrot, na tentativa de manchar de uma vez por todas a reputação do agora samaritano Jhaver e conturbar ainda mais o processo de inocência de Sebastian.
Afinal, ninguém há de querer entre eles um anjo que continua castigando a humanidade e um profeta das trevas.
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