01/09/2010 - Capítulo 51
Em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo e do CastigadorNão há mais o que esperar. As mãos de Jhaver finalmente vão ao encontro do chicote. Miguel observa com um quase sorriso na boca. O mesmo quase sorriso que deve se manifestar na boca de Deus.
Chega de tanto resistir, de tanto negar a própria essência. O maior castigador de todos os tempos voltaria a castigar. Não há como escapar da sina daquele chicote. Todas as revoltas, todas as vontades de se fazer justiça, todas as angústias estão presas ali naquele instrumento de punição.
A palmatória do mundo, aliás, dos mundos.
É como se aquele chicote fosse a face oculta de Deus. De um Deus castigador, que não gosta de aparecer.
Todo o esforço para resgatar Jhaver dar-se-ia por perdido. O anjo negro voltaria a castigar como a mão esquerda de Deus.
Ao menos, é o que muitos esperam. Nesse tempo em que ele ficou afastado de seu cargo a humanidade gozou de um período de tranqüilidade sem precedentes. Por isso, talvez fosse preciso providenciar, com urgência, terremotos, tsunamis, furacões, secas, enchentes...
Sem os castigos os humanos perdem o medo de Deus, perdem a razão de ter fé, perdem as rédeas e as guias e se tornam livres.
E criatura alguma pode ser totalmente independente de seu criador.
Sem dor e limites, todos se acham no direito de ser Deus.
O paraíso não pode ser vivido na Terra. Caso isso ocorra, a submissão ao divino visando um lugar no Éden perde o propósito.
A regra é objetiva: todo ser humano para alcançar a glória precisa ser escolhido. Ninguém se auto-escolhe.
Adão e Eva foram castigados e todos os seus descendentes provam deste castigo. Eis a sina que não pode ser desfeita em hipótese alguma. A maçã foi só uma desculpa para iniciar o tempo dos castigos.
Para toda rebeldia existe um castigo. Para toda liberdade há um pecado.
O próprio Cristo quando veio a Terra na tentativa de redimir os homens de seus pecados sofreu horrores. Inclusive, das chicotadas.
Rezam as lendas que Jhaver estava encarnado na época e foi um dos soldados que sangrou com chicote as costas do filho de Deus.
Castigado porque queria salvar a humanidade?
Castigado porque tinha de pagar pelos pecados de um Deus que não é só amor e bondade?
Castigado porque amou ao próximo mais do que amou ao próprio Pai Celestial?
Castigado porque excedeu seus limites?
Ou simplesmente castigado porque nasceu carne? E toda carne é fruto proibido.
Muitas são as dúvidas. Talvez nunca se conheça a história verdadeira. No entanto, Jhaver parece fazer parte da história de homens e deuses.
Por mais que deseje, não pode deixar sua natureza de lado e simplesmente mudar o curso de seu destino.
Por mais que todos tentem esconder, aquele anjo negro é o quarto mistério. Aquele que ficou de fora da santíssima trindade. Foi esconjurado até mesmo dos evangelhos apócrifos. É o eclipse que o rei sol renega.
Além do mais, não há castigador algum naquele conselho capaz de assumir o posto maior que há séculos pertence a Jhaver.
Todos são mais fracos do que ele.
Todos estão aquém dele.
Todos querem estar no seu lugar, mas não podem.
Ainda não chegou a hora de Jhaver cair. Aliás, ele não pode decidir isso. Sua existência é refém da supremacia divina.
O livre arbítrio é apenas mais uma história. Ainda mais para quem ainda tem muitos serviços a prestar.
Por tudo isso, talvez até essa seu descaminho seja perdoado.
São muitas as tentações e as leis ocultas que regem a nossa existência.
Sendo assim, nada mais do que esperado ele se apoderar novamente daquele chicote.
Na verdade, é aquele chicote que parece se apoderar dele.
Chega de adiar o reencontro.
Suas mãos vão de uma vez por todas ao encontro daquele instrumento que é capaz de colocar toda a humanidade de joelhos diante do Criador.
Sebastian está ajoelhado num quarto escuro rezando para que todo o mal que o ronda se afaste.
Pede por Malena, por Micaela, por Tomas, por Valentina, por Diego, por Gastón, por Celeste e, pasme, por Jhaver.
Como o tempo da Terra é diferente do tempo dos Céus, alguns dias de calmaria se passaram desde que ele teve aquele encontro com Alicia.
A enteada estava animada com as atividades culturais do Centro Espírita. Reunia-se com as crianças e escrevia e lia e ensinava e encenava prosas e poesias. A autora de muitos escritos que ficaram guardados em gavetas longe dos olhos de todos, agora tomou coragem de nascer.
E isso lhe fez muito bem. Chegou até a ficar mais corada e recuperar um sorriso há tempos adormecido.
Afastou-se do pai de seu filho, da vontade de se suicidar, da tia, do submundo, das mentiras, das bebidas e das drogas.
É uma pena que teve de ser afastada da mãe. É o preço que teve de pagar para escapar dos enredos de Alicia.
Curtia a gravidez, os encontros com as crianças, a amizade com Celeste, o dia a dia com Tomas e Sebastian.
Voltou, até mesmo, à escola. O padrasto a acompanhou nos primeiros dias, e conversou com a diretora e com os professores, conseguindo que a menina ganhasse mais uma chance.
Querendo ajudar, tentou se reaproximar da tia no intuito de descobrir o paradeiro da mãe, mas Alicia, fazendo-se de amiga, levou-a a uma clínica de recuperação. Quis interná-la à força. Por sorte, conseguiu escapar.
Já Tomas dedica-se à música. Passa horas e horas compenetrado naquele universo de cifras e notas. Foi o jeito que encontrou para se anestesiar dos problemas que o cercava. E Sebastian apóia essa iniciativa aplaudindo seus ensaios, levando-o às aulas, comprando livros e revistas do gênero.
A saudade da mãe e da avó é pungente, mas confia no padrasto que diz, a cada novo dia, que esse tempo de separação e sofrimento está perto de acabar.
Também se queixa das vozes que ouve. Vozes que dizem horrores sobre o padrasto, sobre a mãe, sobre a irmã, sobre ele mesmo.
Sebastian levou o garoto para tomar alguns passes espíritas num centro chamado: “Novo Caminho”. Por mais que quisessem fechar suas estradas, sempre haveria uma forma de seguir adiante. Bastava acreditar. Um lugar que ele descobriu em uma de suas tantas andanças. Entrou, sentiu-se bem, ofereceu-se para ajudar. Em casa, ele rezava bastante, muitas vezes junto com o menino.
No entanto, mesmo com todas essas orações, aquelas vozes não o deixavam.
Depois de algumas procuras, descobriu que o menino ainda era pagão. Não havia sido batizado. Os pais de Hernandez seriam seus padrinhos. No entanto, sempre adiavam, inventavam desculpas, inviabilizavam o tal batizado. O tempo passou e o menino ficou sem receber aquele sacramento que, segundo a tradição católica, liberta do pecado original.
Talvez por isso ficasse tão suscetível aos espíritos zombeteiros. Crianças malcriadas que depois de desencarnadas não encontram paz, vivendo a atormentar outras crianças.
Podia ser uma besteira da cabeça de Sebastian, mas ele estava certo de que deveria providenciar o batizado de Tomas.
Embora mergulhasse cada vez mais no espiritismo seus costumes católicos ainda tinham força.
E é essa mistura de passes magnéticos e contas de rosários, de espíritos de luz e santos, de eternidade e morte em cruz que molda esse novo homem.
Ao menos, um homem que volta a acreditar.
Mas como batizar aquele menino sem os pais presentes? Só se algum padre conhecesse a sua história e se dispusesse a fazer isso quebrando os protocolos. O único que atende a essas condições é monsenhor Mariano.
Mesmo ciente de todo o retrospecto negativo dos últimos encontros, é preciso procurá-lo o quanto antes.
Sebastian vai à Igreja de São Miguel Arcanjo e tem uma conversa tensa com o padre, que insiste em repudiá-lo.
Os dois discutem na vista de outros fieis.
Mariano expulsa o promotor novamente. Com a cabeça quente, Sebastian diz que vai procurar uma forma de afastar o sacerdote daquela igreja.
Beatas e sacristães se levantam em defesa do pároco, cercando-o e ameaçando linchar o promotor caso ele volte àquela igreja.
Um homem chega a apontar uma cruz de ferro, que fica presa a um suporte na frente do Santíssimo, contra o peito daquele que foi batizado, catequisado e crismado naquele santuário.
O devoto de São Miguel Arcanjo sai dizendo que isso não ficaria assim.
Ao chegar à calçada, seu celular toca. Um número desconhecido, uma voz desconhecida, uma informação desconhecida. Ele tem um calafrio. De forma anônima, alguém, dizendo ser enfermeiro, avisa-o sobre o paradeiro de Malena. Sussurrando ao telefone, informa que sua mulher está em uma clínica em Santa Fé precisando de ajuda.
Sebastian não pensa duas vezes antes de pegar a estrada. Pouco mais de trezentos quilômetros o separam dela.
Uma voz insiste em dizer para ele não ir. Porém, ainda tomado pelo nervosismo por conta do ocorrido com o padre e ansioso por rever a mulher ele perde a sensibilidade e não é capaz de escutar os espíritos que o aconselham.
Ao volante, pega o telefone e liga para casa. Ninguém atende.
Algo o incita a ir para casa, mas tem medo de perder tempo e, com isso, prejudicar ainda mais Malena. Não sabe realmente em que condições sua esposa está. Precisa salvá-la.
Além do mais, tudo seria muito rápido.
Os amigos de luz enviam vibrações pedindo para que ele não vá. Ele se fecha e acelera.
Um pneu fura. Pode ser um sinal de que não deve se aventurar.
Porém, finge não entender os avisos. Pensa ser apenas uma fatalidade.
Troca o pneu e continua.
Um carro o fecha, ele sai da estrada e tem outro pneu furado como saldo. Agora teria que voltar.
Estranhamente, um carro, da mesma marca e modelo que o seu, encosta a sua frente e oferece um estepe. O homem, com olhos vidrados e poucas palavras, ainda o ajuda na troca.
Sebastian quer pagar pelo pneu, mas o homem não lhe dá ouvidos, entra no carro e segue adiante.
Pior, entende tudo errado. Acredita que foram os anjos que o ajudaram querendo que ele vá ao encontro de Malena.
O promotor liga para casa, o telefone só dá caixa-posta. Assim como os celulares de Micaela e de Tomas. Ele deixa mensagens de voz e de texto.
Telefona para o porteiro e deixa o recado de precisou fazer uma viagem rápida e pede que, se possível, dê uma olhada nos meninos.
Ele responde que tudo bem e isso deixa aquele padrasto mais aliviado.
Vozes na sua cabeça ainda dizem que ele está cometendo um grande erro, que precisa voltar. Mas ele aumenta o volume do rádio e pisa forte no acelerador.
Sebastian tem então uma visão e vê Micaela e Tomas chorando muito.
Com o carro ainda em movimento tenta outra vez ligar para os enteados. Não consegue.
Desliga o motor. Pensa em retornar. Começa a mudar a direção do carro quando seu telefone toca novamente. Mais uma vez o número é desconhecido. Atende e é a voz de Malena pedindo ajuda.
- Amor, por favor, me ajude. Venha rápido...
A ligação é interrompida bruscamente e ele escuta um grito, como se alguém estivesse machucando sua esposa.
Há instintos e avisos e profecias soltos no ar. Mas ele tem o poder de escolher seus caminhos. E, de posse dele, respira fundo e segue para Santa Fé...
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