Daniel Campos

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24/08/2010 - Capítulo 49

Retratos da alma

Pegar ou não pegar o chicote que ainda brilha uma luz avermelhada? A mesma luz que já não habita mais os olhos daquele castigador. Sob o olhar de Miguel, Jhaver vive o seu drama particular.

Se decidir por tocar suas mãos naquela arma, pode voltar a ser o que acabara de negar: um castigador. Corre o risco também de se destruir devido a diferença energética entre ele e o chicote.

Deus não destrói espírito algum. Assassinos, extupradores, ladrões, ateus... todos vão ao Umbral no intuito de que um dia possam se arrepender e se tornarem pessoas melhores. Enfim, que possam evoluir.

Desintegrar um ser espiritual é contrariar as leis da evolução, que permite erros e falhas em seu processo.

Deus não destrói, tampouco castiga ninguém. Para castigar, por exemplo, há o Conselho de Castigadores. Para defender e atacar há as legiões de arcanjos. Para redimir os homens de seus pecados veio à Terra Jesus. Há sempre alguém para ser instrumento da vontade divina.

Nesse caso, pegar aquele chicote poderia ser uma forma de Jhaver se autocastigar ou, até mesmo, se autodestruir.

Um teste e tanto para descobrir se as vibrações do chicote realmente não são mais aquelas que habitavam o senhor dos castigadores.

Então, basta dar as costas e ir embora sem tocar aquela tira energética que já castigou tantos.

No entanto, a situação não é simples assim.

Não pegar o chicote é demonstrar fraqueza, medo e inferioridade em relação ao desconhecido e ao que foi um dia.

Além do mais, abandonar aquele desafio é algo que não irá acabar com as dúvidas daqueles que estão o pondo à prova.

Jhaver também não sabe o que pode sofrer se não tomar decisão alguma.

Aliás, toda e qualquer decisão implicaria em consequências mais ou menos graves sobre sua existência.

Voltar a ser o Castigador é, sem dúvida, o caminho mais fácil. Teria que pagar um preço por seus malpassos, contudo as coisas voltariam à normalidade.

Não é por acaso que o lugar de Jhaver no Conselho dos Castigadores ainda está vazio.
Para dar um basta a toda e qualquer expectativa criada em torno dele, o anjo negro precisa se posicionar.

E não há para quem pedir inspiração ou um simples conselho. É um conflito entre o Jhaver do passado e o do presente.

Só ele pode escolher o caminho que terá de percorrer dali por diante.

Já na crosta terrestre, Micaela desce de um táxi, observa um prédio e entra. Uma construção velha, com linhas e janelas e corredores simples. Passos depois, fica frente à frente a uma porta e ao encostar percebe que ela está entreaberta.

Empurra. As dobradiças fazem-na ranger. As luzes estão acesas. Mas não parece haver ninguém ao longo daquela sala comprida. Ela não diz nada. Apenas caminha.

Caminha entre cavaletes, tintas e paletas.

Conforme caminha vai olhando as telas.

Paisagens bonitas e sombrias. Rostos conhecidos e anônimos. Desertos e multidões. Concretos e abstrações. Também não há um estilo definido.

Existem quadros romanticos, renascentistas, rococós, surrealistas, clássicos, expressionistas, naturalistas, impressionistas, futuristas...

Ao fundo, perto de uma janela, de costas para aquele mundo de pinturas, uma mulher de olhos vendados com um pincel em movimento.

O vestido da mulher ganha o balançado do pincel.

Entre pinceladas curtas e longas vai nascendo uma tela. Uma quadro que retrata o rosto de uma criança. De um menino com poucos meses de vida. Olhos claros, cabelos ralos, pele iluminada.

Micaela não diz nada. Fica admirando aquela cena e, instintivamente, leva as mãos à barriga.

Embora haja toda uma candura naquela cena, as pincelas são firmes, fortes e rápidas.

Depois de uma passagem breve de tempo, o quadro está pronto. As mãos que pintavam se acalmam, ficam soltas no ar por alguns segundos e a mulher finalmente tira a venda.

E eis que então Micaela e Celeste se entreolham.

- Bonito quadro.

- Desculpe, não vi que estava aí. Faz muito tempo que chegou?

- Não. Só entrei por que quando eu encostei-me à porta para bater ela abriu. Perdoe-me por ter invadido o seu ateliê. Aliás, vim aqui para pedir perdão por ter lhe tratado tão mal lá no apartamento dia desses. Estava um pouco alterada e acabei me descontrolando quando lhe encontrei nua diante do meu padrasto. Não tinha o direito de fazer o que eu fiz.

- Foi Sebastian quem lhe mandou aqui?

- Não. Ele nem sabe que vim lhe procurar. Quando ele saiu para resolver algumas coisas relacionadas à Justiça eu ainda dormia.

- É que depois daquele dia eu não falei mais com ele. Fiquei bastante envergonhada pelo que aconteceu.

- Está tudo bem. Ele me explicou tudo. E eu acredito.

- Fico feliz por acreditar na existência de vida após a morte e na influência dos espíritos sobre os encarnados. Pensei que iria se interessar mais por esse universo quando lhe vi acompanhar algumas atividades no Centro em companhia de sua avó. Aliás, foi lá que encontrou o endereço daqui.

- Para dizer a verdade, não. Sinceramente, não sei o que acontece comigo. Eu tinha tudo para ter trilhado uma estrada e acabei pegando outra completamente diferente.

- Calma! Você é só uma adolescente de quinze anos.

- Por isso mesmo. Tenho medo dessa estrada que lhe falei não ter mais volta. Pelo contrário, receio que ela só vá me levando para mais longe, mais longe, mais longe de mim. Ou, ao menos, do que eu sonhei para mim.

- Aceita uma água? É tudo o que posso lhe oferecer aqui.

- Sim, obrigado. Mas como lhe disse, eu tenho tido alguns comportamentos estranhos. Devo estar com depressão. Ora estou bem, ora com raiva. Ora estou alegre, ora triste. Ora sinto solidão, ora quero ficar sozinha. E eu não quero ser assim. Mas quando vejo, já fiz o que não queria fazer, já falei o que não queria falar, já fui para onde não queria ir. Igual quando fui para o La Boca naquele dia.

- Igual quando você veio para cá agora.

- Como sabe? Quando percebi já estava aqui. Não foi algo premeditado.

- Presumo que Sebastian tenha lhe contado sobre os espíritos vampiros?

- Ele falou sim...

- Pois bem, você está muito fraca emocionalmente falando. As coisas por quais têm passado acontecem em maiores ou menores proporções com um grande número de pessoas. Os espíritos das sombras querem que você fique a cada dia mais vulnerável no intuito deles lhe dominarem de uma vez a ponto de se apoderarem de seu corpo para promover a discórdia, a guerra, o inferno.

- Mas por que eu?

- Porque eles não vão atrás de quem já está perdido. E também porque você demonstrou fraqueza ao longo dos dissabores que enfrentou.

- Como assim?

- Diante da separação de seus pais e da entrada de Sebastian em sua vida, você ficou revoltada. Você fechou seu coração. Você fez uso de álcool e drogas. E isso chamou a atenção deles. Somos postos à prova diariamente. Tanto espíritos de luz quanto umbralinos estão de olho na forma como procedemos. Além do mais, você é uma peça estratégica nesse jogo que pretende acabar com sua mãe e com seu padrasto.

- Não sei o que fazer para mudar, ainda mais com essa gravidez.

- Por favor, não blasfeme. O seu bebê é o começo de uma nova vida, tem tudo para viabilizar sua transformação. Ele pode vir para unir, para fortalecer, para dar sentido, para lhe fazer compreender uma série de coisas. Basta você acreditar.

- Mas minha vida virou de ponta cabeça.

- Desvire-a!

- O pai da criança não quer assumi-la, tampouco me ver. E eu posso dizer que nem o amei assim como nos filmes. Foi uma coisa boba. Um descuido meu. Quando vi, já tinha acontecido. Minha mãe está internada, não sei se vai se recuperar. Já perdi dois irmãos. Só me sobrou Tomás e o vejo murchando a cada dia mais. Minha avó já não me escuta mais como antes. Minhas amigas se afastaram de mim. Ganhei várias advertências na escola por mau-comportamento, além de notas baixas e um monte de faltas. Meu pai sumiu no mundo. Agora, tive que fugir de casa e procurar ajuda daquele que eu sempre reneguei.

- Mas tudo tem um motivo para acontecer. Além do mais, você tem sua mãe, seu irmão e seu filho que precisam de você. Não pode fraquejar.

- Queria tanto dar um jeito na minha vida. Queria ser forte e decidida como você.

- E quem lhe disse que sou essa fortaleza toda? Eu também choro, tenho meus momentos de dor, minhas dúvidas. Acha que é fácil conviver com a descrença alheia? Acabei um relacionamento porque meu namorado me chamava de louca. Onde já se viu acreditar em espíritos?

- Eu não sabia...

- Todos nós temos os nossos fantasmas, os nossos problemas. O que muda é a forma como os encaramos. Eu busquei ser firme na minha fé, entregar-me ao que acredito. Você podia tentar fazer o mesmo...

- Até minha fé está confusa. Acostumei a ir ao Centro com minha mãe e minha avó. Meu pai nunca teve religião e sempre achou o espiritismo uma grande besteira. Mas nunca implicou com nossa vida espiritual. Queria mais era que nós o deixássemos em paz com sua boemia. Minha mãe foi quem sempre batalhou para sustentar a casa. Meu pai gostava mesmo era de diversão. É duro falar isso, mas ele sempre se fez de vítima, de desempregado, de doente. Mas jamais se afastou do tango que é como uma doença em sua vida.

- Depois veio Sebastian...

- Isso. Depois, veio Sebastian e essa imposição de ser católico, de ir à missa, de estudar em colégio de freiras... Eu jamais encarei isso como algo positivo. O fato é que começou a dar tudo errado em minha vida e nem os espíritos nem os padres, nem os ensinamentos de Kardec nem os santos conseguiram solucionar os meus problemas. Fui me afastando de tudo, ficando descrente...

- E isso lhe adiantou de alguma coisa?

- Não.

- Então, mude. Temos os espíritos, os anjos, os santos para nos ajudar. Mas só nós temos o poder de mudar a nossa vida.

- O que você quer dizer com isso?

- Que a mudança tem que partir de você.

Nesse momento entra um grupo de crianças no ateliê fazendo barulho. São crianças carentes, alunas de Celeste. Na verdade, um dos trabalhos voluntários que ela faz em prol do Centro.

Ela convida a filha de Malena para ficar e assistir e, até, participar da aula.

Micaela se comove com aquelas crianças, sente paz e alegria naquele ambiente.

Entre pincéis e tintas, volta a sorrir. A sorrir como criança que é.

No final, agradece a oportunidade. E Celeste a convida para voltar. Diz que ela pode ensinar poesia para as crianças já que gosta tanto de escrever.

Ela gosta do convite e ainda é presenteada com aquele quadro que Celeste estava pintando quando chegou. O rosto de um bebê. Olhos expressivos. Sorriso macio. Pele aveludada.

Aceita, mas questiona:

- Eu vi você pintando esse quadro. No entanto, por que você assinou como Jean Henrique? É algum tipo de brincadeira?

- É que não fui eu quem pintou. Eu apenas empresto meu corpo e minhas mãos aos espíritos.

- Nunca havia escutado nada parecido com esse tipo de mediunidade.

- Há várias formas dos espíritos se manifestarem em nosso cotidiano, basta parar e olhar ao seu lado ou, até mesmo, dentro de você.

- Engaçado, pode parecer loucura minha, mas parece que já vivi essa cena. E mais, tenho certeza de que conheço esta criança do quadro.

- Eu também tenho certeza que sim.

Dito isso, Celeste passa a mão na barriga de Micaela que, sem entender muita coisa, chora, sorri, agarra-se ao quadro e caminha em direção à porta. Três ou quatro passos depois ela se volta e pergunta:

- Só não entendi uma coisa. Se você me disse que muito do que eu faço sem perceber é por conta da influência dos espíritos vampiros, por que razão eles me trouxeram aqui.

- E quem lhe disse que foram eles?

- E quem foi então?

- Já ouviu falar em espíritos de luz? Embora possa pensar o contrário, eles ainda não desistiram de você.


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