Daniel Campos

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08/07/2010 - Capítulo 36

Olhos de ágata

Sebastian está no hospital, debruçado em recordações sobre o corpo de Malena. A saudade de ouvir sua voz, entre abraços e beijos, num buquê de palavras e sentidos o faz reviver cenas e acontecimentos. Embora o cinema de seus pensamentos reprisasse a todo instante as brigas, principalmente a última, responsável por desencadear aquela situação, ele se esvai dos capítulos negativos e se deixa levar pelas páginas que pode viver feliz ao lado daquela mulher.

Ao longo daqueles intensos anos de relacionamento, jamais haviam ficado tanto tempo sem se falar. Aquela separação forçada foi o maior silêncio existente entre os dois. Antes dela, distanciamento parecido só a da solidão angustiante e apaixonante na ocasião do flerte. Um momento de encontros e desencontros, de segredos e descobertas, de certezas e dúvidas. Como que num palco particular, sem platéia e efeitos de luz, diz baixinho o monólogo sobre o início da história de um casal.

Aos poucos, ele se emociona, tenta contracenar com aquele corpo estático, os olhos umedecem, as mãos tremem, dores e arrepios são sentidos no corpo e na alma daquele que lutou e sonhou muito para ser um dos personagens principais daquele texto que pode facilmente ser chamado de romance:

- Não sabe como é difícil lhe encontrar assim, quase morta. Seus olhos fechados fecham-me portas, janelas, passagens. Por que me deixou aqui sozinho. Tudo perde a razão. Ou se esqueceu que depois que lhe conheci, desaprendi a viver solitariamente. Você me ensinou uma existência em par, agindo e pensando sempre um no outro. Pior do que ser cortado pelo chicote de Jhaver ou entregue ao umbral é não poder ver seus olhos. As cores, os desenhos, as notas, as vidas brotando em seus olhos.

- Lembro da primeira vez que os vi. Já se vão cinco, seis anos. Era 13 de fevereiro, véspera de Dia dos Namorados. Eu me iludia com namoradas abstratas, em uma tentativa de amenizar decepções e solidões, quando entrei em uma joalheria que não conhecia. Já havia passado várias vezes naquela porta. Sempre fui curioso a conhecer novos lugares e admirador de jóias, mas jamais tive um motivo forte o suficiente que me fizesse entrar naquela loja.

- Pois naquela véspera de Dia dos Namorados não sei se cupidos ou zombeteiros me empurraram para o interior daquela loja de muitas vitrines e paredes cor de fim de tarde. Por coincidência, o sol se esvaia e um ar frio, embora fosse verão, ruborizava sua face, colorindo em camadas seus olhos como pedras de ágata. Não sei quanto tempo naveguei pelos seus olhos abandonando meu leme. O telefone tocou e, ao contrário de atender, sorriu-me num cumprimento comedido.

- Quando lhe vi pensei que estava diante de mais uma vendedora que estava prestes a me vender algo que eu não precisava. E, talvez por isso, esqueci-me das jóias enroladas naquele pano escuro de mostruário e me detive em seus olhos que me traziam algo do passado. Sabendo que não poderia me demorar, desejei que seus olhos se abrissem como um relicário e me revelassem algo do passado ou do futuro. Mas você e esse seu olhar atrevido se fecharam. Ou não podiam ou não queriam me revelar nada.

- Como fiquei perturbado. Enquanto acompanhava a exposição das peças, minha cabeça fervilhava pensando de onde eu lhe conhecia. Seu rosto era de uma familiaridade que chegava a me assustar. Mas no único instante em que fui indiscreto, você fugiu com delicadeza. Preferi não perguntar mais nada e descobrir tudo por mim mesmo. E foi aí que eu vi o quanto você me provocava sem nem perceber.

- Entre brincos, anéis e pingentes eu escolhi, por força de seu colo geometricamente desenhado a minha frente, uma gargantilha. Atendendo a um pedido de cliente, experimentou o colar. Ainda precisou da minha ajuda para desabotoar o feixe. Foi a primeira vez que senti o perfume amadeirado que brota de sua nuca. E mais uma vez me perdi na tentativa de me lembrar de que tempo eu conhecia aquela mistura de pele e aroma.

- Nesse momento o telefone tocou novamente e, mais uma vez, conseguiu quebrar fajutas expectativas. Pois dessa vez você o atendeu. E discutiu com alguém. Oficialmente eu não lhe conhecia, mas naquele instante torci para ter brigado com seu namorado, noivo, marido, isto é, seja lá o que fosse aquela criatura do outro lado da linha. Observei o seu descontentamento após aquela ligação, o aceleramento de seus batimentos e a impaciência com tudo aquilo que lhe rodeava.

- De forma bastante profissional e querendo encurtar a minha visita, perguntou se eu realmente levaria aquela peça. Uma gargantilha de ouro branco com alguns cristais. Sem graça pela situação, eu que havia entrado praticamente para bisbilhotar alguma coisa ainda desconhecida, acabei comprando a jóia. Preenchi um cheque e você parou alguns segundos diante daquela folha. Com medo de sua desconfiança, disse que poderia sacar dinheiro se preferisse. Desculpando-se disse que não se tratava do que eu estava pensando, apenas meu nome lhe fez lembrar-se de alguma coisa.

- Nossos olhos ficaram fitando uns os outros e mais uma vez o telefone tocou. Maldito telefone. Dessa vez você sorriu, disse palavras macias. Contorci-me de raiva e ciúme. Como eu quis ser essa pessoa com que falava. Meu Deus, como poderia sentir tais coisas diante de uma mulher que não sabia sequer o nome? Pedi um cartão da loja e o nome da vendedora caso eu precisasse trocar o presente. Ela se negou ao pedido dizendo gentilmente que tinha certeza de que minha namorada ficaria feliz com tal jóia.

- Ao sair, você ainda me desejou boa sorte com o presente. Pensei em dizer e fazer e refazer tantas coisas... Porém, só me restou morder os lábios, impedindo a saída de qualquer palavra, e deixar a loja vendo você se embaralhar no reflexo de uma vitrine de diamantes, esmeraldas, turmalinas, rubis, ametistas... Cheguei a ter a sensação de que seus olhos riram da minha indiscrição e, em segredo, acompanharam-me até meus passos morrerem adiante.

- No alto daquela parede de tijolos rústicos, o letreiro “Palácio Jóias” impregnou em meus pensamentos trazendo-me sonhos e pesadelos. Tanto que voltei no meio da noite para me alimentar daquele letreiro iluminado em uma serigrafia carregada de passionalidade. Foi assim que iniciei meu Dia dos Namorados, dentro do carro, sozinho e diante daquelas letras curvilíneas de néon. Para completar o enredo do filme, só faltou ser abordado por um policial.

- Foram vários dias lhe buscando e me desesperando naquele endereço. E nunca mais eu lhe achei. Pensei que tinha sido demitida, adoecido ou qualquer coisa do tipo. Procurei-lhe em vários horários na expectativa de lhe encontrar escondida em um dos turnos. Eu ainda não sabia que você não é mulher de se esconder. Mas cheguei a pensar de um tudo diante de tantas tentativas e de nenhum dos rostos vistos ali ser o seu. Para não despertar desconfiança, mais do que a minha presença constante já despertava, sempre comprava alguma coisa.

- De procura em procura fiz uma caixa de jóias e estourei meu orçamento. O pior de tudo é que eu não tinha dedos, tornozelos, pulsos, pescoços, orelhas para contemplar com aquelas aquisições. Depois de você, tudo mais ficou para trás perdendo significado e sentido. Tive que deixar aquelas peças em uma gaveta de fundo falso em meu apartamento. À noite me pegava imaginando você usando aquilo tudo e sofria com sua ausência.

- Foi assim até o dia em que tive coragem para uma atitude inesperada: peguei aquela gargantilha e enviei para o endereço da sua joalheria com a seguinte mensagem: para a mulher dos olhos de ágata. Ainda no cartão, coloquei meu telefone na esperança que me ligasse. Nos primeiros dias fiquei preso ao aparelho, refém de uma possível ligação. Foi então que, pouco a pouco, eu me rendi à Inglaterra, onde passei três meses em uma especialização. Cruzei o Atlântico com a certeza de que nossa história terminara antes mesmo de ter começado.

- Todas as inglesas me lembravam você embora tivesse pouco delas. Voltei à Argentina me policiando para não passar mais em frente das lojas com nome Palácio. Aliás, fugi de jóias e joalherias. Não poderia voltar àquela busca obsessiva. Mas como o destino vai e vem em passos tortos, como num tango, um dia foi você quem me encontrou, sem querer, sem saber, em meu serviço. Você havia sido arrolada como testemunha de acusação no inquérito de um empresário que fez fortuna por meio do contrabando de pedras preciosas.

- Quando o barulho dos seus saltos tateando o assoalho da sala do júri, eu percebi que, por mais uma vez, estava diante de seus olhos de ágata. Meus olhos correram para o seu pescoço, mas não encontraram gargantilha alguma. Em seguida, escorreram para suas mãos e também não conseguiram qualquer aliança. Angústia e alívio ao mesmo tempo, mas, acima de qualquer coisa, dúvidas.

- Você falou com firmeza, superando o medo das ameaças que vinha sofrendo. Era preciso denunciar aquele que prejudicou muitos donos de joalherias. Naquela ocasião, descobri que você era a proprietária da rede de joalherias Palácio. Malena Palácio. Herdou a profissão da família, que tinha uma longa tradição de ourives. Formada em designer de jóias, modernizou e expandiu o comércio da família a ponto de se tornar referência no setor.

- Independentemente da situação, o fato é que nossas vidas se cruzaram mais uma vez. Como de praxe, após o depoimento você saiu da sala acompanhada por um oficial deixando-me as lascas de seu olhar. Foi difícil me concentrar, mas consegui derrubar todos os argumentos de defesa do tal empresário. Ao fim do julgamento, o juiz condenou o réu a alguns anos de prisão e eu já sabia o caminho para lhe encontrar. No entanto, não fora preciso, você me esperava no estacionamento do tribunal. Queria me parabenizar pelo trabalho, que aquela condenação era muito importante para você que por pouco aquele homem não acabou com sua carreira...

- Foi então que suas palavras foram gradativamente perdendo força a ponto de planarem no ar. Dizia que se lembrava de mim, mas não sabia de onde. Mais uma vez, fitei seu pescoço, estava sem o colar. Não querendo ser indelicado e endossar o não que nunca me disse, calei-me. Apenas, frisei que também aqueles olhos de ágata também não me eram estranhos.

- Nessa hora, ao ouvir a minha expressão, você parece ter se lembrado. No entanto, não disse nada. Apenas sorriu. E me perguntou se poderíamos conversar outro dia, pois ela queria algumas orientações jurídicas sobre o processo de separação litigiosa que teria de enfrentar. Tentei não demonstrar entusiasmo, mas você me disse meses depois que eu não tive sucesso nessa encenação. Ainda naquele encontro trocamos telefone e nos perdemos por mais alguns dias em lembranças e expectativas até eu finalmente me achar todos os dias nos quartzos de seus olhos de ágata.

- Os seus olhos de ágata.

Os mesmos olhos que agora lentamente se abrem diante de um Sebastian sem fala.

Sob a vigília de céu e inferno, Malena deixa o estado de coma.

Observação do autor: Próximo capítulo: 13/7 (terça-feira). Até lá!


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