16/03/2010 - Capítulo 3
É guerra...Do alto da fachada renascentista da igreja de uma só torre, São Miguel Arcanjo, estático como convém a uma escultura de mármore, observa o espetáculo que improvisa seu palco na estreita calçada da Avenida Bartolomé Mitre.
Após colocar a enteada no chão e ganhar uma série de tapas contra o peito, Sebastian pergunta se Micaela tem consciência do que acabara de fazer. E as palavras, assim como os olhares e gestos, surgem carregadas de ira:
- A culpa é toda sua! Foi você quem me matriculou nesse colégio careta. “Escravas do Sagrado Coração de Jesus”, isso não combina comigo. Eu não agüento mais desperdiçar meus domingos tendo que vir a esta igreja embolorada e ouvir um padre caduco para mostrar que somos uma família perfeita. Já estou farta de fazer o que não quero, de ser o que não sou...
Sebastian altera a voz:
- Basta! É castigo o que tanto quer? Chega de mesada, de passeios e festas. A partir de hoje você está proibida de sair de casa, ou melhor, de seu quarto. E amanhã mesmo vai pedir perdão à madre superiora, ao monsenhor Mariano e as suas colegas pelo malfeito.
- Vai sonhando, responde Micaela em tom de deboche, iniciando assim uma troca de ofensas com o padrasto:
- Não vou fazer mais nada que você queira. A partir de hoje só faço o que eu quiser. Desculpe lhe decepcionar, mas não tenho vocação para ser ridícula.
- Para a senhorita tudo o que eu acredito, e o que penso sobre Deus e o que faço na igreja é ridículo. Certamente achou ridículo eu ter organizado essa missa, convidado parentes e amigos, oferecido um coquetel para comemorar sua formatura.
- Você em momento algum me perguntou se eu queria tudo isso. Ao invés de gastar seu dinheiro com essas escravas, deveria ter me pagado uma formatura de verdade com a turma do meu antigo colégio.
- Você não sabe o que é melhor para...
- E você sabe por acaso? Você não consegue nem cuidar da sua própria vida. Deveria pensar em resolver seus problemas com minha mãe para depois dar palpites no que eu faço.
A essa altura, quem não foi embora está assistindo a confusão que renderia boas rodas de fofoca pela semana afora.
Enquanto os pais de Sebastian dão palpite, incitando o filho a bater na menina para que ela aprenda a respeitá-lo, a cunhada dá razão à sobrinha Micaela. E assim, do bate-boca principal nascem os secundários. Dona Valentina pede calma e Malena implora ao marido que as leve embora. Não há nada que a incomode mais do que escândalo.
Sebastian, tentando colocar um fim naquele circo de horrores, levanta a voz e os braços dizendo que todos podem se dirigir ao salão paroquial, desfrutar dos drinques e canapés que foram preparados para os formandos. À medida que ele pede desculpas pelo acontecido, Micaela faz careta e o interrompe:
- Encham a barriga, só tomem cuidado para não cometer o pecado da gula, senão, já sabem, Deus castiga.
Irritado, Sebastian tapa a boca da menina com a mão.
Já descabelada e com a maquiagem toda borrada, ela provoca:
- Pra você que roubou a mulher do meu pai, que matou meu irmão, que levanta falso contra minha família, que brinca de Deus no tribunal e que nos oprime com suas leis o melhor é não falar em castigo mesmo.
O devoto de Miguel silencia, em choque. Os parentes, bem como todos os que estão ao redor, silenciam. Tomás, irmão de Micaela, agarra nas pernas da mãe aos gritos. Enquanto uma freira se benze tentando afastar de si aquelas cenas, o fotógrafo faz questão de capturar cada momento.
Os desconhecidos, com exceção do homem alto e negro que continua por perto sem dizer uma palavra, afastam-se.
Rompendo o silêncio sepulcral da última fala, Micaela diz com a raiva do mundo:
Você roubou, você matou, você blasfemou, você castigou...
A voz da menina dobra como sinos. Sebastian sua e com lágrimas de fogo correndo pela face é tentado pelas falas da enteada até o ponto em que não agüenta domar o instinto e diz o que não deveria dizer:
- Você nunca se conformou em me ver no lugar de seu pai, que de tão bom que é, que de tanta atenção que lhe dá, nem veio aqui hoje. Pudera, deve estar rodeado de garrafas e vagabundas, como é de seu feitio.
Ela se descontrola e cospe na cara de Sebastian:
- Se Deus fosse realmente bom não teria me castigado colocando um demônio como você em meu caminho.
Monsenhor Mariano aparece na calçada, ainda de batina, pedindo para que parassem de discutir na porta de sua igreja. Dona Valentina também diz que aquela discussão não levará a nada, só fortalecerá os espíritos ruins que se alimentam de brigas como aquela. Mas ninguém os ouve.
De imediato, Sebastian levanta a mão ameaçando estapear a cara de Micaela, mas desiste, engolindo raiva e choro num mesmo gole, tão quente quão amargo.
Com ódio e vergonha, dá as costas àquela igreja e segue de cabeça baixa por aquela avenida batizada Bartolomé Mitre em homenagem a um soldado que transformou a Argentina em uma trincheira. Nada mais propício para aquele momento.
Caminha até alcançar o carro, distante uns duzentos metros dali. Caminha sozinho, mas mantém a desconfiança dos últimos dias de que está sendo observado, seguido, sondado. Olha em volta e, como das outras vezes, não há ninguém.
Malena, Valentina, Micaela e Tomás, querendo evitar novas discussões, vão de carona com Alicia, que logo tratou de apoiar a sobrinha e crucificar de vez o cunhado.
O céu, sem luas e estrelas, começa a derramar uma chuva fina, como que querendo limpar, ou melhor, apagar os últimos acontecimentos.
Entre o pranto e o silêncio, o carro de Sebastian segue de volta para casa num percurso demorado e desconhecido. Tão desconhecido quão o homem negro e alto que insiste em ficar, quilômetros a fio, preso ao retrovisor.
Observação do autor: Acompanhe a continuação desta história na próxima quinta-feira (18/3)!
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