18/05/2010 - Capítulo 21
Medo e féDepois da experiência do passe, Sebastian volta para casa e encontra, em seu quarto, Micaela e Tomás dormindo na cama junto com Malena. O que em outras ocasiões lhe faria ficar com raiva, agora lhe tira um sorriso. Chega a achar bonita a cena. Sob a luz amarelada de um abajur, ele se aproxima, puxa um lençol no intuito de cobrir seus corpos e se curva até dar um beijo de boa noite na face de sua esposa.
Repete o mesmo gesto com as crianças. Ao beijar a fronte de Micaela, ela abre o olho e se assusta, como que já querendo se levantar e ir para seu quarto. Afinal, sempre foi assim. Mas hoje parece ser diferente. Ele coloca a mão em seus ombros impedindo-a de levantar e balança a cabeça como quem diz que eles podem ficar ali desta vez. Ela não entende nada, mas permanece ali deitada vendo o padrasto deixa o quarto.
Havia perdido a noção da hora. Já passa das vinte e três. Como Tita está de folga naquela noite, ele mesmo faz um sanduíche e um copo de suco. Tenta digerir o que acabara de viver. E tem uma certeza: uma mudança interior havia começado.
- Seja bem vindo a esse novo tempo, meu filho!
Como que o saudando, dona Valentina entra na cozinha arrastando um chinelo de pano.
- Acordei a senhora, desculpe! Não foi minha intenção.
- Não há do que se desculpar. Meu perispírito esteve o tempo todo ao seu lado no centro. E fiquei muito feliz com o que aconteceu lá e aqui (colocando a mão sobre o peito de Sebastian, na altura do coração).
- De fato, parece que as coisas estão mudando. No entanto, ainda tenho muitas dúvidas.
- Todo processo de mudança leva a uma série de incertezas. Mas você finalmente encontrou o rumo certo. Agora, precisa manter-se firme neste caminho.
Sem resistir, Sebastian expõe uma de suas maiores dúvidas:
- Por que estou sendo castigado?
- Em geral, somos castigados pelo que fazemos nessa ou em vidas passadas. Temos o livre arbítrio, mas devemos pagar por nossas decisões erradas.
- Na prática, esse castigo vem da acusação de que matei minha avó?
- Também. Mas não é só isso. Algo mais grave aconteceu para despertar Jhaver.
- Então por que, em específico, estou sofrendo esses castigos?
- Ele só aparece quando alguém excede em muito as diretrizes de sua natureza humana.
- Pois então eu quero falar com ele para esclarecer isso de uma vez por todas.
- Não é assim que as coisas funcionam. Ainda mais com Jhaver. Ninguém o chama, ninguém o controla, ninguém o ordena.
- Eu só...
- Além do mais, não é qualquer corpo que ele pode usar.
- Mas ele já desceu no corpo da senhora?
- Sim. Mas tenho trabalhado para evitar que isso ocorra novamente. A incorporação de um espírito forte como ele despende muita energia. E eu preciso de toda reserva para tentar lhe ajudar. Infelizmente, acho que sua avó é só o começo desta história.
- Será que Gastón pode me ajudar nisso?
- Quando incorporamos um espírito, a vibração de uma entidade toma conta de nosso corpo em diferentes intensidades. A grande maioria dos médiuns trabalha com a incorporação parcial, na qual o médium fica consciente. É assim com Gastón. Porém, para receber seu anjo castigador é necessário ter uma sintonia mental com o espírito capaz de produzir uma incorporação integral. Jhaver é tido como um espírito superior, de grande elevação. Só médiuns bastante evoluídos são capazes de recebê-lo.
- Então em quem ele, salvo a senhora, pode descer?
- Minha filha Malena é muito mais evoluída do que eu espiritualmente falando.
- Não acredito...
- Pois acredite. Embora não vá ao centro como eu, ela faz suas orações e mantém contato direto com o mundo espiritual. Ela tem suas obrigações lá. Na maioria das vezes, vai durante o sono. Nunca percebeu seu corpo mais frio do que de costume? Eu mesma já vi você reclamando dela não prestar atenção no que você fala ou faz em certos momentos. Nunca desconfiou que ela estivesse em dois lugares ao mesmo tempo?
- Ela me enganou por tanto tempo...
- Melhor medir suas palavras para evitar novos castigos. Ela não lhe enganou, deixou realmente de freqüentar o centro espírita. Só que ela não pode negar sua missão.
- Só falta a senhora me dizer que estou sendo castigado por isso.
- Você está certo. Malena tem um papel muito importante aqui na terra. Ao você atrapalhar que ela desempenhe esse trabalho você impede que ela evolua espiritualmente. Em outras palavras, você obstrui que ela desenvolva os planos de Deus.
- É que eu sempre achei essas coisas de espiritismo uma ofensa a Igreja...
- E não foi a Igreja quem justamente lhe fechou as portas?
Sebastian fica em silêncio.
- Não seja bobo. Catolicismo e espiritismo podem viver em comunhão. Na Bíblia nos traz diversas passagens referentes à reencarnação, ao karma, ao livre arbítrio...
- E o que faço com minha fé em São Miguel, em Nossa Senhora, no anjo da guarda?
- Continua tudo da mesma forma. Todos eles existem no mundo espiritual. São Miguel é mesmo um dos anjos mais próximos de Deus. Nossa Senhora é, de fato, a rainha dos céus. E cada pessoa que se faz merecedor tem seu anjo da guarda.
- A senhora falando dessa forma fica tudo tão lúcido...
- Só estou tentando lhe abrir os olhos. Acho muito bonita sua fé, sua devoção, mas é preciso enxergar além. Você não acredita em santos, em céu, em anjos?
- Sim.
- Então por que não pode acreditar em espíritos?
- Sebastian abaixa a cabeça e começa a falar envergonhado:
- Quando pequeno eu ouvia vozes, cheguei inclusive a ver um tio-avô que havia morrido de tuberculose. Descrevi-o perfeitamente sem nunca tê-lo conhecido. E todos se assustaram. Disseram-me que aquilo não existia e começaram a fazer ameaças. Afinal, ninguém queria ter um filho diferente. E eu também não queria ser uma aberração. Desde então, sempre tentei negar esse mundo. E me apeguei cada vez mais a Igreja Católica. Com o passar dos anos, de tanto negar vozes e visões, parei de tê-las. E fui crescendo e acreditando, cada vez mais, que não passava de bobagem de criança.
- Acredita se eu lhe falar que já sabia de tudo isso?
- Como assim?
- Há muitos anos, descobri que sua união com minha filha pertencia aos planos de Deus. Desde então, eu e outros espíritos de luz passamos a acompanhá-lo mais de perto.
- Mas...
- Os castigos de Jhaver são de agora. Mas faz tempo que os umbralinos tentam acabar com seu casamento. Na verdade, eles lutaram muito para que vocês não se encontrassem e se apaixonassem e se entendessem.
Sebastian leva os pensamentos para longe enquanto termina de tomar seu suco.
- Você e Malena têm uma missão especial aqui na Terra, o amor de vocês é muito importante para o equilíbrio dos mundos. Ainda não posso falar muito sobre isso, mas logo você entenderá...
- Então a senhora já me conhecia?
- Sim. Eu sei dos seus passos, do seu coração, da sua mediunidade. Por isso insisti tantas vezes em conversas ligadas a assuntos espirituais, mesmo quando você fechava a cara. Eu sempre quis provocar sua descoberta.
- E eu sou médium?
- Sim. Só que você nunca assumiu seu dom, por isso está mais fraco do que deveria estar num momento tão difícil como esse.
- A senhora tem certeza?
- Pense: acha que se não tivesse ao menos um resquício de mediunidade estaria conversando com espíritos, recebendo a visita de um anjo tão importante como Jhaver?
- Então por que eu não consigo vê-lo?
- Por duas razões. A primeira, porque você ainda não alcançou tamanho grau espiritual. Muito em razão de sua descrença. A segunda, porque ele não quer que você o veja.
Sebastina se cala. Valentina o abraça e diz que por mais tarde que seja ele finalmente acordou e ela está orgulhosa disso. Ele escorre uma lágrima e pergunta:
- E o que faço agora?
- Continue sua vida. Só que tenha mais fé naquilo que sente. A comunicação espiritual se dá, em sua maior parte, por meio de pensamentos. Então, aposte mais na sua intuição.
- Justamente o que eu neguei por toda uma vida... como fui tolo.
- Arrependa-se, mas não se martirize. Ainda dá tempo de recuperar isso.
- Então não é melhor contar para Malena, trazê-la para lutar ao nosso lado?
- Não. A gravidez deixa seu corpo aberto, vulnerável. Por isso tem sido tão perturbada por umbralinos. Pode ter certeza de que a consciência espiritual dela sabe de tudo o que está acontecendo. Porém, no plano terreno, é melhor nos calarmos para poupá-la. Ou não reparou que essa gravidez vem tendo uma série de riscos desde o início?
- A senhora acha que Jhaver pode matar meu filho para me castigar?
Dona Valentina silencia.
- Por favor, não me esconda nada. A senhora já sabe de alguma coisa?
- Precisamos confiar em Deus e ser fortes. Malena precisa muito de nós.
- Desculpe, mas a senhora não me respondeu. Jhaver não vai se contentar enquanto não acabar com essa gravidez, não é?
- Eu vou estar sempre ao lado de vocês.
- Eu não posso permitir isso. Esse filho foi tão desejado, tão esperado. E se acontecer alguma coisa com Malena. Eu quero falar com Jhaver. Eu preciso. Eu dou qualquer coisa em troca dessa gravidez. Por favor... Jhaver. Cadê você? Jhaver!
Nessa hora dona Valentina tem um arrepio ruim, ela estremece toda, um vento surge do nada, mesmo com a casa fechada, e a lâmpada da cozinha estoura.
Dona Valentina reclama:
- Meu filho, nunca lhe falaram para não tomar o santo nome de Deus em vão e para não fichar chamando o demônio? Como Jhaver é a ponte que liga o céu ao inferno, é melhor cumprir esses dois ditados. Pode estar certo de que o anjo castigador está acompanhando cada passo seu, não precisa invocá-lo.
- Vou olhar Malena, ver se está tudo bem.
- Não precisa. Há um guardião da luz lá. Há muitas coisas que eu não posso interferir. Mas não vou deixar que nada de ruim aconteça com minha filha, nem que eu precise desafiar a ordem vigente e sofrer as conseqüências. Pode estar certo disso.
Observação do autor: Próximo capítulo: 20/5 (quinta-feira)
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