Daniel Campos

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11/03/2010 - Capítulo 2

Um Deus Castigador

Nem a espada de Miguel nem a testa franzida da madre superiora nem aquele homem sem nome no fundo da igreja nem os flashes de Sebastian nem a tosse insistente do padre intimidam Micaela. Ela respira fundo, retira o microfone do pedestal, deixa aquela redação na tribuna e, andando pelo altar, continua sua fala:

- Deus é o melhor e o pior de cada um de nós. Afinal, nem tudo é azul neste céu. O mesmo Deus que abençoa, castiga.

A madre arregala os olhos. O padre engasga. O padrasto interrompe os cliques. Malena aperta a mão de sua mãe, que já esperava por tudo aquilo. Dona Valentina tentou a todo custo cancelar aquela missa, porém, como sempre, não foi ouvida pelo genro.

Os olhares dispersos, os bocejos alongados, os cochichos febris, os pensamentos alheios são interrompidos por uma inquietação coletiva - será que ela falou aquilo mesmo?

Tal trecho não está na redação vencedora. O que Micaela pretende? Seja o que fosse, engole em seco e continua a ler num ritmo cada vez mais acelerado o texto que havia decorado durante todo o dia de hoje:

- O Deus que é bom também tem sua face perversa, a exemplo dos seres humanos, os quais ele criou a sua imagem e semelhança. O Deus que criou o homem também o expulsou do paraíso. Ao invés de perdoar, Deus castigou Adão e Eva.

- O Deus que criou a vida, também a exterminou num dilúvio de 40 dias e 40 noites. O Deus que nos entregou o livre arbítrio é o mesmo que castiga diariamente a humanidade por suas decisões erradas. O que é certo? O que é errado? Eu não sei, só sei que existe o castigo.

O padre se levanta de forma brusca e olha para a freira do cerimonial, que mira sua superiora, que fita Sebastian, que volta seus olhos para o patrono da igreja, que se preocupa em olhar o demônio, que olha para todos ao mesmo tempo em que não olha ninguém. Enquanto não fazem nada, Micaela toma fôlego e fala cada vez mais rápido. Parece possuída:

- O Deus adorado nesta e em outras igrejas como pai deixou o próprio filho ser humilhado e morrer em uma cruz. O Deus misericordioso mandou seu anjo preferido –Lúcifer - para o inferno por meio deste aqui (apontando o dedo para a imagem de Miguel).

- O Deus que criou os alimentos é o mesmo que deixa seus filhos morrerem de fome e frio. O Deus dos milagres é o mesmo que deixa suas criações serem devoradas pelo câncer, pela AIDS, pelo Alzheimer.

- O Deus da paz também criou a pólvora. Em nome de Deus, quantos morreram? Quem matou mais ao longo da história: a cruz ou a espada? O Deus que inclui, também exclui. Quantos vivem o paraíso? Um número muito menor em relação aos que vivem a miséria? São muitos os malditos e os desgraçados, enfim, são muitos os anjos caídos vivendo dia após dia uma vida de castigos.

- Se Deus rege todo o universo, tudo de ruim que nos acontece também é vontade de Deus, não é? Se Deus é só bondade, porque ele deixa que traições, envenenamentos, acidentes e sofrimentos se abatam sobre nós?

- Será carma? Será destino? Serão as pendências das vidas passadas? Será a lei de causa e efeito? Dêem o nome e a explicação que quiserem, mas, no fundo, todos nós sabemos que existe um Deus castigador capaz de amar e matar com a mesma voracidade.

Os mais conservadores colocam as mãos nos ouvidos e deixam a igreja arrastando filhos e netos. O padre resmunga, mas não toma decisão alguma. Sebastian está zonzo a ponto de precisar se sentar entre as alunas no primeiro banco. A madre superiora se levanta com apoio de uma bengala branca.

Um disse-me-disse invade o ambiente. O caos se instaura. Desde 1830, quando a igreja foi inaugurada, nunca se ouviu tamanho absurdo. Muitos temem que aquela falação somada aos anos de má-conservação do espaço, que já havia sido alvo da invasão inglesa, desmoronasse.

O homem negro continua no mesmo lugar, com a mesma serenidade inquieta. Malena quer se levantar, mas Valentina a segura. É preciso terminar o que já foi começado.

A madre superiora se aproxima da menina e lhe dá uns beliscões na tentativa que ela volte a ler a redação vencedora. Aquela em que traçava Deus a partir de um discurso açucarado e benevolente. Mas Micaela se esquiva até que fica entre a cruz dependurada no peito da madre e a espada de Miguel.

Sem pensar duas vezes ela sobe na mesa do altar esquivando-se daquela mulher de hábito e votos nada parecidos com os seus e faz dali seu palco particular:

- Se Deus é onipotente, onisciente e onipresente, se ele governa e rege o mundo, se ele é o dono de nossas vidas, se ele quer realmente o nosso bem, se ele é só amor, como explicar os terremotos, as tempestades e os furacões que matam milhares de pessoas?

- Deus também é guerra, é dor, é sofrimento. Deus ama, mas também castiga.

Nesse momento, Sebastian invade o altar, pega Micaela pelas pernas, tomba-a em suas costas e a carrega para longe dali. O microfone cai ao chão chiando de maneira aguda, irritando os ouvidos já irritados. Ela grita, debate-se e vai deixando a igreja entre aplausos e vaias. Para abafar o escândalo, o coral entoa o cântico final. Mas Tomás, no comando do órgão, puxa um ritmo dançante, completamente inapropriado para a ocasião.

O padre, mesmo sem microfone, traça uma cruz no ar e assim dá a benção final aos presentes. Em seguida, desce do altar. Tomando a palavra e sem nenhuma etiqueta, a madre superiora coloca fim na apresentação do coral. Em seguida, pede desculpas aos presentes, diz que houve um equívoco e que as medidas competentes serão tomadas.

Na tentativa de remediar a situação, diz que esse Deus castigador não existe. Afirma e reafirma e volta a afirmar que não há castigos, apenas uma série de sofrimentos que temos de passar para chegarmos ao Céu. Que Deus nos ama e que o demônio, querendo nos afastar desse amor, tenta-nos a todo instante insuflando atitudes como a que vimos agora.

Mas o discurso da madre não surte o mesmo efeito causado pelo de sua aluna, pois além das palavras serem mais fracas, muitos já haviam ido embora.

Se não bastassem esses elementos, Micaela havia saído gritando a plenos pulmões que Deus castiga, que os anjos castigam, que os padres castigam, que as freiras castigam e que seu padrasto, além de castigar, fedia a podre.

Observação do autor: Não perca o terceiro capítulo na próxima terça-feira (16)


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