27/04/2010 - Capítulo 15
Visitando o Umbral
São rios de lama podre correndo como esgoto. São árvores mirradas, retorcidas e, em sua maioria, secas. Não há plantações ou pomares. Só uma terra ruim, infértil, e incontáveis pragas. São cobras, ratos, baratas e outras criaturas asquerosas se esgueirando pelo caminho. Não se vê luz natural alguma por ali. É como se o sol tivesse apagado por completo.
Uma nevoa densa toma conta de tudo, impedindo a luz de astros e estrelas ultrapassar. Manhãs e tardes são vividas em clima de penumbra. E quando vem a noite, a escuridão emoldura uma lua vermelha como sangue no céu.
Os clarões que cortam a paisagem sombria provêm de explosões e incêndios provocados por seus habitantes. Habitantes que maltratam uns aos outros por vingança, prazer ou pela simples continuidade do mal que cometeram em sua estada na Terra. O vento varre o que achar pela frente trazendo gritos, choros, súplicas.
O que se ouve e, se vê e se sente no umbral é o sofrimento nas mais diversas escalas. São berros e prantos correndo por abismos, pântanos, desertos. O ar é sufocante. Por todos os lados emana a depressão, o desespero, a angústia, a ruindade.
É por este cenário de caos e pavor que se aventura Valentina, acompanhada de um médium de seu centro espírita e quatro desencarnados. Entre eles, sua mãe, dona Gimena, uma alma consideravelmente evoluída. Os espíritos de luz, como são chamados, volitam e brilham pelo umbral afora.
Ao mesmo tempo em que as criaturas das sombras são afastadas por aquela luminosidade, elas ficam sedentas para capturar algum daqueles bem-aventurados. Escondem-se, fogem, correm, mas não deixam de pensar nas crueldades que poderiam fazer com aqueles seres perfumados que ousam invadir seu território fétido.
Mas aqueles espíritos de luz estão bem preparados e concentrados para evitar possíveis baixas. E é assim, produzindo luz e vibrações positivas, que eles desbravam aquele universo de trevas. O universo paralelo no qual habitam os espíritos ruins. São assassinos, estupradores, impiedosos, orgulhosos, descrentes.
Todos ali ardendo suas dores como feridas em carne viva. A maioria, sofrendo sem se arrepender. E é isso que faz do umbral um local traiçoeiro. Ali, todos são capazes de qualquer coisa. Afinal, o umbral é uma região muito pesada porque reflete o estado íntimo de quem nele habita.
No meio daquele ambiente insalubre, a expedição coordenada por Valentina chega a um casarão em ruínas, sem pintura, com buracos no telhado, com rachaduras imensas pelas paredes e muito lixo em volta. Daquela casa sai uma senhora com um vestido comprido todo rasgado e sujo. Uma senhora que usa um anel de rubi e brincos de pérola negra. É dona Soledad, avó de Sebastian. É ela a responsável por alimentar o castigador.
A velha não tem brilho algum e apresenta em seu rosto as mais variadas expressões de raiva. De surpresa, os espíritos aumentam a vibração e a cercam de luz. Ela os xinga, os amaldiçoa, o manda embora. É dessa forma, com xingamentos e ofensas, que os umbralinos tentam enfraquecer os bons. Pouco a pouco, espíritos ruins vão se aproximando e engrossando o coro de palavrões. Chegam também a arremessar paus, pedras e sujeiras.
Além de tentar capturar os espíritos iluminados, os umbralinos querem evitar que eles resgatem dali qualquer criatura. De pronto, Soledad avisa que não quer ajuda. Geralmente esses espíritos bons fazem essas incursões para oferecer socorro, daí que são chamados também de socorristas. Mas o propósito desta missão é outro. Quando perguntam de Sebastian, ela espuma de ódio e diz que ele tem mais é que ser castigado.
Nessa hora chega Jhaver, vestido com uma túnica acinzentada e sustentado por duas imensas asas também coloridas em diversas tonalidades de cinza. Traz em sua mão esquerda um chicote preto. Uma das tantas histórias que o circundam conta que foi com ele que Jesus Cristo foi torturado antes da crucificação.
Quando ele chega, trazendo um imenso chicote preto, os umbralinos se calam. Afinal, muitos deles estão ali por conta do anjo castigador. Quantos ali já haviam experimentado, ao menos por uma vez, a sangria do chicote daquele negro de olhos tão profundos quão duros.
Os espíritos de luz se esforçam para brilhar ainda mais. Sabem que uma batalha com Jhaver ali, no umbral, poderá ter conseqüências drásticas.
Os umbralinos já se lambem e se mordem esperando as sobras daquela guerra. No entanto, ao contrário do chicote, Jhaver usa as palavras:
- Conta para eles o que Sebastian fez com a senhora, dona Soledad.
A velha, tomada por uma tremedeira, não sabida se de raiva ou medo, responde:
- Ele me matou. Aquele desgraçado acabou com a minha vida.
Valentina não agüenta e exclama:
- Mentira! Ele me disse que a senhora morreu de câncer. Um câncer no estômago.
- Mentirosa é você que nem me conhece. Eu sou Soledad, uma das mulheres mais ricas de Buenos Aires. Olha a minha casa, como é linda. Estes aqui em volta são meus empregados. Eu tenho muito dinheiro e jóias. E foi para ficar com tudo isso que Sebastian me deu veneno.
- Sou sogra de Sebastian nessa encarnação.
- A sogra que ele não acredita? A sogra que ele julga ser uma fraude? A sogra que ele tantas vezes não deu ouvidos?
Valentina não cai na armadilha armada por aquela velha mantendo-se serena.
- É uma pena que a senhora ainda não tenha conseguido se desligar do plano terreno e continua projetando sua vida anterior aqui. Olha bem para a casa da senhora: é horrível. Aqui a senhora não tem empregado algum. E o que a senhora consegue comprar com seu dinheiro no umbral?
- Insolente. Você deve estar atrás da minha fortuna. Foi Sebastian que a mandou aqui, não foi? Ele não cansa de querer o meu fim.
- Lembra que no fim da vida ele lhe dava comida na boca, empurrava sua cadeira de rodas até o jardim, tratava da senhora com todo zelo.
- Ele me deu foi veneno, sua descarada. Ele esperou minha filha virar as costas e os empregados se distraírem para colocar veneno na minha comida. Eu não tinha câncer. Tinha uma dor no estômago causada pelas comidas malfeitas daquela cozinheira incompetente. Sebastian me matou. Ele sempre cobiçou minhas jóias, minha casa, minhas comidas.
Jhaver assume a palavra:
- A verdade está sob seus olhos! É preciso fazer Justiça. Quantas pessoas inocentes Sebastian matou ao longo de suas existências terrenas? Até mesmo a própria avó. Dona Soledad é só uma de suas muitas vítimas. E ela quer que ele seja castigado, não quer?
- Quero! Ele é ruim demais. Ele traiu minha confiança. Ele não gosta da minha filha. Faz ruindade demais com ela para defender aquelazinha que se casou com ele. Fiquei sabendo que até um sobrinho meu ele colocou na cadeia. Ele não presta.
Valentina muda o rumo da conversa:
- Quem é que está rezando para deixar a senhora tão perturbada assim? Há alguém fazendo a senhora não encontrar a paz.
- Deixa de tolice. Sebastian não presta. Muita gente o odeia.
- Desista disso. O seu neto lhe ama...
Um bando bastante numeroso de umbralinos, fedendo a podre, se aproxima perigosamente daquela roda de espíritos bons. É como se a luz fosse cercada pela escuridão. Eles falam mal, provocam, cospem. Fazem de um tudo para enfraquecer aquela legião do bem. Falam com desdenho que aqueles espíritos são escravos de Deus, que são paus-mandados, que não tem autonomia nem poder suficiente para fazer nada.
São seis socorristas contra milhares de umbralinos.
O grupo de Valentina dá as mãos e se concentra buscando gerar o máximo de luz. Os umbralinos avançam, muitos sob a forma de bestas, sobre aquele círculo de bondade, amor e paz. Muitos levam armas de eletricidade que provocam descargas de energia tão fortes a ponto de fazer aqueles seres celestiais sofrerem novamente as dores terrenas.
Gastón, o médium, cai e começa a ser puxado por umbralinos. Dona Gimena o protege emanando um perfume demasiadamente forte de lírio. Flor de lírio. Mas não conseguirá fazer isso por muito tempo.
Eis então que Jhaver, num simples bater de asas, separa os dois grupos, como que o joio do trigo, jogando para longe aqueles espíritos de luz.
Valentina e seus amigos acordam caídos no meio de uma plantação de arroz, em uma das colônias espirituais. Ao menos ali, estão protegidos. Contudo, estão fracos, um tanto quanto debilitados. As vibrações estão baixas. A aura, com brilho fosco e falho. Aquela ida ao umbral havia sugado muito de suas energias.
Se o anjo castigador não interferisse, o resultado seria muito pior. De certa forma ele os ajudou. Mas por quê? Na verdade, Jhaver não é mal nem bom. É um castigador. Um anjo que transita entre as coisas de Deus e do Demônio realizando seu ofício: castigar.
Valentina precisa de mais informações sobre dona Soledad. Precisa falar com o genro. Porém, antes de retornar ao corpo terreno é preciso purificar o perispírito, que é uma espécie de contorno sutil e permanente da alma, possibilitando sua interação com os meios materiais e imateriais.
Enquanto Valentina e seus amigos vão para a Gruta das Rosas se purificar, Jhaver ganha tempo para continuar seus castigos.
Observação do autor: Próximo capítulo no dia 29/04 (quinta-feira)
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