Daniel Campos

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09/03/2010 - Capítulo 1

Sob a lâmina de Miguel

Mesmo com o demônio sendo esmagado pelo pé e açoitado pela lâmina afiada da espada de São Miguel Arcanjo há uma mistura de aflição e medo no ar. E por falar nele, o ar passa áspero pelas narinas, pesa sob os ombros e traz apertos ao peito, nós à garanta e calafrios à espinha.

Bobagem. Deve ser apenas má impressão, afinal nós estamos em uma igreja, em horário de missa e na companhia de um sacerdote. Aparentemente, nada de ruim pode acontecer. Aparentemente...

Mesmo com uma voz em sua consciência dizendo “não” sucessivas vezes, a freira responsável pelo cerimonial do colégio Escravas do Sagrado Coração de Jesus levanta-se da cadeira de veludo arroxeado posicionada no corpo do altar e quatro passos à frente sussurra algo próximo ao ouvido direito do padre que realiza uma missa de Ação de Graças pelos formandos da oitava série de um dos mais tradicionais e rígidos colégios de Buenos Aires.

Em resposta ao que acabou de ouvir, monsenhor Mariano, pároco há mais de vinte anos da igreja São Miguel Arcanjo, balança a cabeça de poucos cabelos em sinal positivo, sorri pausadamente e logo após o término do canto de comunhão conta aos presentes que tal escola realizou um concurso de redação com o tema “Quem é Deus para você?” e que agora, antes da benção final, todos iriam ouvir o texto vencedor.

Dito isso, uma menina de quatorze anos deixa o seu lugar e começa a passar por suas amigas com um sorriso tímido preso aos lábios e uma cadência mais lenta do que a habitual em suas passadas. Talvez sua rebeldia adolescente tivesse se acalmado naquele ambiente sacro. Ou talvez estivesse inibida pela situação. Ou talvez aquela não fosse realmente ela.

No entanto, quando deixa os bancos reservados às estudantes e surge no corredor central, onde todos podem vê-la por inteiro, urge a confissão de que não há engano ou milagre algum. É ela mesma. Afinal, quem mais poderia vir a uma missa dedicada às escravas do Coração de Jesus trajando um vestido branco bastante curto e tênis rosa choque?

Enquanto ela caminha pelo vermelho do tapete, o demônio parece se contorcer sobre o pé de São Miguel.

As mesmas colegas que aplaudem a vencedora do concurso lançam-na olhares de inveja. Seu irmão, com os dedos calados sob as teclas do velho órgão, sorri ao mesmo tempo em que seria capaz de tudo para não estar ali.

As professoras que a incentivam, torcem-lhe o nariz ao se lembrar de suas malcriações. Sua família se enche de contentamento e de temor.

O padre faz um aceno de satisfação, embora ache aquilo uma besteira sem tamanho. O fotógrafo contratado para fazer o álbum oficial mira o altar mesmo não acreditando naqueles santos. A madre superiora, sentada na primeira fileira de bancos, bate palmas quando, na verdade, desejava dar boas palmadas naquela menina. E, no final da igreja, um homem alto e negro que acabara de chegar balança a cabeça em sinal de negação.

Se ele veio para evitar alguma coisa, chegou tarde. A estudante se apóia na tribuna onde há pouco foram feitas as leituras litúrgicas e, sob a luz de uma vela e da espada de Miguel, dá boa noite aos presentes, agradece a oportunidade de forma graciosa e começa a ler seu texto.

Para o alívio de todos os presentes, a redação não tinha a rebeldia de seu visual. Ao menos, não aquela que foi escolhida pelas freiras:

- Quem é Deus? Deus é Pai, Deus é Filho, Deus é Espírito Santo. Deus é, sobretudo, criador. Inspirado, ele criou as árvores e seus frutos mais saborosos, as primaveras e as flores mais perfumadas, as águas calmas e profundas, os caminhos e os nossos passos. Com todo amor, Deus criou o homem, a mulher e os sentimentos que os povoam.

- Por todas essas criações, muitas delas verdadeiras obras-primas, Deus é bom e misericordioso. Foi ele quem criou as estrelas, os vaga-lumes e os anjos. Criou as nuvens, a chuva e o sol. Criou o frescor das tardes e o sono, bem como os sonhos.

- Foi Deus quem criou os nossos olhos e tudo o que vemos. Foi Deus quem criou os nossos corações e tudo aquilo que sentimos. Foi Deus quem fez a luz, a esperança, a solidariedade e a bondade a partir do que ele é. Ou seja, Deus é um pouco e muito de tudo isso.

Ao longo da igreja enfeitada com rosas brancas, todos fitam Micaela, confortados por suas bonitas e agradáveis palavras. Ela lê com como gente grande, firme e convicta. Perto dos degraus, o padrasto invade o enquadramento do fotógrafo e captura em flashes a filha que ganhou há dois anos.

Quer registrar cada segundo daquela apresentação com zelo, já que nas últimas semanas eles vinham se estranhando quase que diariamente. Por alguma benção divina, aquela menina no altar voltou a ser aquela Micaela doce e bem comportada da época em que se conheceram.

Minutos antes, chegou a sorrir e acenar ao padrasto como que lhe agradecendo pelo fato de estar ali. Decretava-se uma trégua no clima ruim vivido entre os dois. Por força do destino, não havia lugar ou momento mais propício para o início de um entendimento.

Sebastian havia sido batizado, feito primeira comunhão e sido crismado naquela igreja. Foi ali que exerceu várias atividades, de coroinha a catequista. Freqüentava as missas de domingo e tinha boa relação com os integrantes do coral, da eucaristia, da secretaria, da catequese, do clero, inclusive, com o pároco. Tanto que foi ele quem idealizou e custeou aquela missa de ação de graças.

Ainda não havia se casado oficialmente com a mãe de Micaela, mas monsenhor Mariano, em foro íntimo, encarregou-se de abençoar as alianças do casal. Sua paixão por Malena não tinha fronteiras, se preciso fosse assumiria o lugar do príncipe da milícia celestial e mataria quantos demônios ela quisesse para provar seu amor e selar sua paz conjugal.

De fato, seu amor vivia um tempo de guerra e sua salvação necessitava de medidas drásticas. Ao contrário de beijos e carícias, viviam brigas, discussões e ameaças. Seu mal-estar com Micaela era só uma das frentes que ameaçava ruir seu casamento.

Estava desesperado, sem saber o que fazer. A situação tinha fugido de seu controle. Não é à toa que, antes da missa, permaneceu em oração por longos minutos e com os joelhos dobrados aos pés do arcanjo.

Todos sabiam que suas duas maiores paixões eram Malena e aquela igreja. Todos, exceto o homem negro e alto que chegou desconhecido e permaneceu em pé com a feição amarrada sob o arco da porta central e Micaela, que, com aquela cara de anjo, estava prestes a libertar o demônio dos pés de Miguel.


Comentários

14/07/2011, por ADELIO:

OLA DANIEL CAMPOS,ADOREI A SUA OBSERVACAO E NUNCA TINHA PARADO P PENSAR SOBRE ESSA TRINDADE(DEUS,DIABO E O CASTIGADOR.APESAR DE NAO CRER NESSE DEUS JUDAICO,O MUNDO PRECISA DE REFLEXOES COMO ESSAS P AS PESSOAS ENTENDEREM QUE NOS NAO NESCESSINTAMOS DE INTERMEDIARIOS(LIDERES RELIGIOSOS) P O "REINO DOS CEUS" , QUE P MIM E O AQUI E AGORA.PARABENS E CONTINUE ASSIM...


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