Daniel Campos

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15/04/2010 - As pedaladas de Hélio

Por aquela estrada estreita, divisa tênue entre a arquitetura da cidade e as histórias do campo, Hélio pedala sua bicicleta. Pelas curvas e ladeiras, leva sua marmita, suas ferramentas, seus sonhos. O chinelo de dedo rodando no pedal mantém em órbita um mundo encantando ou o que sobrou dele. Hélio é o último dos três guardiões das terras que um dia formaram a lendária fazenda de José Barbosa. Luiz, seu cunhado, sempre preferiu as estradas às plantações. Morreu num acidente de caminhão. Líbio, outro irmão de sua esposa Floripes, também pegou sua estrada. O homem que muitas vezes levou a bicicleta de Hélio de carona em sua perua tomou outros rumos.

Com a força dos descendentes de italianos que se encantaram com as coisas da roça, Hélio Coser pedala. Ossos largos, braços fortes, olhos de menino. É assim que aquele homem avança o tempo em sua bicicleta. Assim como Luiz e Líbio, Hélio resistiu bravamente ao amargor dos anos e manteve intacta a delicadeza que movimenta sua vida. É como se naquelas terras existisse uma espécie de fonte da juventude. Quem dela bebe mantém para sempre o coração criança. Sorriso e braços abertos, Hélio pedala com seus muitos calos, com suas muitas batalhas vencidas e com sua vontade muita de viver.

Começa suas pedaladas geralmente quando o sol ainda é tão tímido quanto ele. Pedala sem a ambição de acelerar um carro. Pedala com a simplicidade necessária a sua vida simples. Pedala a ponto de ainda descobrir detalhes no decorrer do velho caminho. Pedala conhecendo o vento. Pedala entendendo o tempo. Pedala como exemplo às novas gerações e em memória daqueles que ficaram pelo caminho. Pedala aceitando as coisas que a estrada lhe trouxe, traz e trará. Pedala em direção à terra puro sangue que sustenta uma figueira imensa e uma lagoa desabitada. Pedala de peito aberto, sem medo ou rancor. Pedala como se pedalasse pela primeira vez. O fôlego e as pernas não são os mesmos. Mas a alma que o move continua intacta.

As terras onde hoje brotam abacateiros e roças de vassoura são seu refúgio e uma pequena parte do que um dia foi a fazenda daquela família. Cercas de arame farpado se ergueram. Estrangeiros se avizinharam. Muita coisa mudou, mas Hélio, ao cruzar aquelas terras com sua bicicleta, mergulha em outros tempos. A paisagem que enche suas vistas não é a mesma que todos enxergam. Mas outra, guardada na memória. Por isso, pedala por aquele filme colorido em tons de verde e terracota com direito a algumas cenas em preto e branco. Quantas histórias, quantos sentimentos, quantos olhares atualmente só existem na cabeça de Hélio?

O colesterol e outros probleminhas rondam os setenta anos daquelas pedalas, porém, sua jornada não pode parar. E ele sabe disso. Afinal, no dia em que sua bicicleta for abandonada em um canto o legado centenário de José Barbosa, o criador daquele mundo de terras e sonhos, terá chegado ao fim. Para terminar o texto, resta a este escritor parabenizar a resistência de Hélio e desejar vida longa as suas pedaladas.


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