Daniel Campos

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Arrozal

Os cochichos de ave-maria se misturam ao ensaio do coral. As ministras, longe da Esplanada dos Ministérios, escolhem quem vão fazer as leituras, carregar as velas, o pão, o vinho, os cestos da oferenda... Os fiéis entram, ajoelham-se, benzem-se e rezam alguma coisa rápida. Depois dessa reza, ela senta-se e espera pelo início da missa. Ao deixar a mão cair sobre o banco de madeira, tateia alguns grãos de arroz. Arroz sem casca e sem cozer.

Grãos de arroz crus. Se juntasse o arroz daquele banco e o que estava no chão, certamente daria um punhado. E ela, sozinha ali, põe-se a imaginar. O tapete vermelho. A chama dos lustres, das velas, dos olhos. O arranjo dos copos de leite ou dos lírios de São José, como bem desejar, ao longo de um caminho tão perto quão longínquo. O vestido da noiva e a longa cauda, que arrastava levando os olhares de tantos. Ela, de braço dado, com o pai, que fizera questão de colocar seu melhor terno. Ela caminhava vendo rostos se misturarem, a emoção não dava para capturar detalhes. Quem estava ali de fato, ela só saberia na fila de cumprimentos ou no álbum de fotografias.

Duas sobrinhas levavam as alianças. Um violino enchia os ouvidos. Mas quando chega ao altar, o desespero grita como um trombeta em seus ouvidos. O altar vazio. Com todos os padrinhos, os padres, os fotógrafos, mas vazio de noivo. Como poderia casar sem noivo? De fato, estava sozinha, mas haveria de ter um noivo.

A imaginação perde o fôlego. Os cochichos de ave-maria se tornam mais próximos. Ela já começa ver a igreja sem decoração, a luz do sol... Sem titubear, volta para a cena. Resgata um ex-namorado que rompera há três meses. Lá estava ele no altar, mas ao encará-lo olhos nos olhos, não resiste e joga o buquê em sua cara. Ainda não havia esquecido da traição que lhe proporcionara.

Troca-se o noivo. O casamento tinha que seguir. Imagina o homem que sempre quis ficar, namorar, noivar, casar... Um amor não correspondido. Nunca tivera coragem de falar nada, mas ele também nunca sequer a olhou para além da amizade. Então, na hora de dizer sim, ele disse não. E ela foi engolida por tantas bocas abertas. Engolida de vergonha.

Desfez-se daquele noivo. Melhor não arriscar tanto. Pensou naquele que dela sempre gostou, mas ela nunca deu a menor chance para ele. Assim, ele nunca a havia traído e nem diria não. Tudo transcorre calmamente. Os padrinhos, os preparativos, o sermão, os cânticos, mas quando o padre pergunta se existe alguém contra aquele casamento os sinos da igreja badalam.

Em nome do pai, do filho e do espírito santo. Nove horas da manhã. A missa começa. E ela se vê obrigada a rezar com a incômoda companhia daqueles grãos de arroz.


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