Daniel Campos

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01/05/2010 - Ainda hoje, é assim

O coração acelera, vai a 300 km/h. Um nó insiste em amarrar a garganta. Um vento dolorido e choroso rema pelo horizonte. Um motor ronca triste ao fundo. Ainda hoje, anos e anos depois, é assim. Pode estar tudo bem, mas há um clima de desconforto. Em cada sorriso, um que de tragédia. Ainda é possível ouvir os gritos desesperados do silêncio. Ainda hoje, anos e anos depois, é assim. Exatamente assim.

Ainda é difícil acreditar, entender, explicar. Ainda é difícil esquecer. Ainda é difícil imaginar como seria o hoje se não houvesse o ontem. Ainda é difícil torcer por outra pessoa. Ainda é difícil acordar no dia de hoje. Ainda hoje, anos e anos depois, é assim. É assim uma tristeza descabida, uma emoção constantemente revivida. É assim uma expectativa de que o fim tenha enfim um final feliz.

Ainda hoje, anos e anos depois, há estilhaços de esperança espalhados por retas e curvas. Ainda hoje, anos e anos depois, há o desejo de reencontrá-lo nem que fosse para dizer “valeu”. Valeu por tanto sonho, por tanta garra, por tanta inspiração. Mas o dia de hoje é condenado ao desencontro. Ao desencontro eterno entre um herói e um menino. Ainda hoje, anos e anos depois, é assim.

Ainda hoje, 16 anos depois, é assim Ayrton Senna.
xxx

Em homenagem a Ayrton Senna, posto abaixo um trecho do capítulo "O Dia da Descriação", do livro “Conspiração Tamburello”, publicado neste site em 2009. Segue:

Quando Senna bateu no muro, quem varria, parou de varrer; quem dormia, acordou e quem estava acordado, entrou em uma espécie de coma induzido, quem namorava, parou de beijar, como se escutasse Chico Buarque dizendo “amou daquela vez como se fosse a última, beijou sua mulher como se fosse a última”.

O último amor e o último beijo tendo ao fundo o som quase imperceptível do coração de Ayrton Senna. Quem rezava, perdeu a conta nas contas do terço. Quem cuidava do fogão, deixou o leite derramar. Quem acreditava, chorou. Quem cantava, desafinou. Quem bebia, engasgou. Quem falava, calou-se.

Da minha humilde posição, o carro parecia inteiro. No princípio, assim como Galisteu, acreditei em só mais uma batida. E, numa inocência idiota, decepcionei-me
com mais uma derrota. O cockpit não sofrera tanto, o santantônio estava de pé, não houve fogo ou explosão. A princípio, só mais um abandono. No entanto, Senna não
acenava, o socorro não chegava e um silêncio estranho se instaurava pelos sete mares.

Eu também agi de forma estranha. Sempre que Senna abandonava uma prova, como que desligando uma espécie de cordão energético, eu tirava os joelhos do chão e permanecia assistindo televisão em outra posição para torcer contra algum rival ou simplesmente abandonava a sala. Afinal, o domingo acabava com a saída de Senna. Mas naquele primeiro de maio foi diferente. Eu continuei ajoelhado, concentrado, torcedor.

Galvão estava sonoramente nervoso. E isso me preocupava ainda mais. Eu chegava mais perto da televisão para tentar enxergar além do óbvio, porém os paramédicos abriram um lençol branco impedindo imagens mais detalhadas. Isso só podia indicar algo grave. De repente, a câmera foca uma poça de sangue no chão. Hemorragia? Traqueostomia? Os pés de Senna estão abertos num ângulo medicinalmente preocupante.

Aquele pano branco me impediu de ver o resultado da batida, onde a massa encefálica de Senna teve seu peso multiplicado por 100 no momento da colisão, batendo
contra a caixa craniana. Foram sucessivos choques internos causados pela desaceleração súbita. Tudo foi muito bruto. Um carro que entrou em uma curva a mais 300 quilômetros por hora, escapa e encontra a sua frente um muro estático. Do ponto de vista clínico, uma tragédia.

No início, fiquei revoltado. Mas depois conclui que aquele pano branco foi o melhor a ser feito naquele momento. Eu não queria ver as camadas do cérebro de Senna deslizando umas sobre as outras, estraçalhando os axônios, que são espécies de fios que fazem as ligações nervosas da cabeça com o resto do corpo. Na maioria dessas lesões, as vítimas morrem. Nos outros casos, vegetam ou sobrevivem com seqüelas graves.

Além dos choques provocados pela desaceleração, a cabeça do piloto foi muito mais afetada. É uma pena que a cabeça não fique dentro do cockpit. As pernas, o tórax, o abdômen e coluna cervical, que ficam protegidos pela cápsula de fibra de carbono,
não sofreram nada. O cockpit da Williams, muito bem construído, era muitas vezes mais forte do que o da Simtek que levava Ratzenberger. Mas e a cabeça?

O poder de proteção do capacete era insuficiente diante do peso da roda em movimento e da mira da haste pontiaguda. Eu não queria ver o afundamento na sua testa e as fraturas múltiplas em seu crânio. Eu não queria ver as hemorragias e edemas que se formaram. Eu não queria ver o rosto de satisfação da Tamburello, tampouco escutar seus gritos de euforia. Será que ela queria ir tão longe?

Será, será, será... E o restante dos conspiradores, será que planejaram tudo isso à risca ou, em algum momento, a situação fugiu do controle. Será que eles tiveram estômago para ver tudo e ainda levantar um brinde ao sucesso da operação ou, não agüentando os excessos da fatalidade, vomitaram a própria falta de escrúpulos.

Eu preferia ver aquele lençol branco que, naquela altura, era uma bandeira branca, uma espécie de pedido de trégua, de desejo de paz, frente à guerra que se
instalava naquele circo. Eu não sabia, mas aquele pano tornou-se uma espécie de santosudário.

Até hoje procuro um pedaço, um retalho, uma linha dele. Mas ninguém mais o encontrou. Virou uma dessas relíquias perdidas no tempo a espera de caçadores de aventura.

Meus olhos verdes ficaram acinzentados como que cobertos pela cortina de um sentimento ainda sem nome. Olhos que acompanhavam atônicos o carro que ainda
deslizava por longas frações de segundos após a batida, indo parar quase à frente da Ferrari de Berger. Frações de horas. Frações de dias. Frações de semanas. Frações de meses. Frações de séculos. Frações de milênios. Frações de ares e mares. Por quanto tempo aquele carro deslizaria pelas minhas retinas?

Meu pai abriu a porta, ele acompanhava a corrida pela televisão da cozinha e eu ainda ajoelhado, acabo-me em uma frase: “Senna morreu”. Ele não podia acreditar.
Minha mãe não acreditava. Minha cachorra não acreditava. Ninguém acreditava. Mas algo me dizia que estava tudo acabado.

Ayrton Sena bateu forte. A frase de Galvão Bueno calava fundo na carne. Aliás, a frase do narrador da Globo calava o domingo. Esqueçam o clube, o churrasco, a praia. Esqueçam o namoro e o passeio. O Brasil entra em coma. O Brasil de Ipanema, de Olinda, de Mogi-Mriim, de Interlagos, de Suzuka, de Budapeste, de Indianápolis, de Monza, de Monte Carlo entra em coma.

A cada segundo, uma nova enxurrada de desespero é descarregada nas artérias verde-amarelas. Doses de adrenalina e tristeza dividem o mesmo coração. Adrenalina cauboy. Tristeza com gelo. E a esperança, que aparecia em raras ocasiões, como na frase - ele balançou a cabeça - foi desistindo de ter esperança. A câmara esconde-se, de propósito, atrás dos cabelos de uma árvore e nos mostra um Ayrton cada vez mais longínquo.

“Neste momento, há um casamento porque hoje é sábado; há um divórcio e um violamento porque hoje é sábado; há um homem rico que se mata, porque hoje é sábado; há um incesto e uma regata, porque hoje é sábado; há um espetáculo de gala, porque hoje é sábado; há uma mulher que apanha e cala, porque hoje é sábado”... Sábado ou Domingo? Vinícius de Moraes agora me confundiu sobre o dia. Se sábado é o dia da criação, domingo, depois daquele acidente, seria o dia da descriação?

No dia da descriação, Ayrton foi morto, assassinado, violentado Alguns dizem que o carro quebrou. Alguns dizem que a pista o enfeitiçou? Alguns dizem que ele se
matou. Alguns vão mais longe e dizem que ele previu sua morte, que não queria correr, mas que ao contrário de pegar um avião direto para sua casa em Angra dos Reis, tentou desafiar o fim. O que dizer da bandeira da Áustria, com a qual ele homenagearia Roland Ratzenberger caso vencesse aquela corrida, encontrada em seu carro? Embora naquela época carro de F1 não trouxesse caixa preta, como nos aviões, a bandeira mostra que, até o fim, ele queria a vitória. E se, realmente, soubesse da morte, tentou superá-la até o
último instante.

Com um carro muito, mas muito inferior ao dela, ele agüentou firme. Agüentou no braço. Senna tentou fechar a porta para a morte até a última curva. Não queria deixá-la passar de jeito algum. Ela pressionava e ele a segurava. Ela ameaçava e ele mudava o traçado. Foi uma perseguição particular, impossível de ser vista a olhos humanos. A perseguição durou sete voltas.

Em uma manobra mais arriscada, a morte colocou seu bólido de lado, Senna deixou para frear depois o “deus me livre” e os dois se tocaram, passando reto em uma curva que também era reta. O horóscopo chinês não mentiu. Senna, como rato, era obstinado demais para desistir. A tradição japonesa também não mentiria, na sétima volta haveria morte e sangue. Quem mentiu para si mesmo, fui eu, Galisteu e uma série de torcedores, que também tentavam sair pela tangente...

Infelizmente, Senna não voltaria mais cedo para casa.


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