08/10/2010 - Adeus Dafne
Se for mesmo verdade essa história de que espíritos humanos reencarnam em cachorros como parte do processo de evolução, principalmente no que diz respeito à purificação, Deus escolheu uma menininha bem espevitada para habitar o corpo de Dafne, uma Cocker que passou de forma meteórica por este planeta vira-lata, recheado de injustiças e fatos que fogem a nossa compreensão. Dafne chegou como paixão à primeira vista da minha esposa, uma espécie de presente de final de ano. De lá pra cá, foram onze meses de convivência agitada.
O plano de criá-la com laços e adereços dentro de casa frustrou-se na primeira noite quando ela mastigou o edredom do nosso quarto. Isso sem falar de suas investidas contra sofás, roupas e vasos de flores. Resultado: foi parar no imenso quintal ao lado de outros três cachorros machos que disputaram seu amor. Mas Dafne queria mesmo era correr pelo terreno, comer plantas, abrir buracos, morder canelas, tomar chuva, comer pão francês e latir para tudo e todos.
Dafne não tinha parada. Espevitada, moleca, maluca... Maluca beleza. Era a alegria da casa. Branca com machas pretas colorindo seus pelos longos, exibia diversos penteados. Chegou até mesmo a ter um topete. Era pura vitalidade. O que eu nunca desconfiei é que ela quisesse viver de forma tão intensa porque sabia da brevidade de sua existência. Tão contagiante quão sua alegria foi a tristeza de ver aquele corpo parado, estático, inerte recostado na porta e os outros cães calados num mesmo silêncio.
Depois de passar por essa etapa de purificação, o espírito da menininha deve estar se recuperando dessa experiência em algum lugar no plano celestial. Enquanto isso, o corpo de Dafne descansa à sombra de um pequizeiro. Uma árvore pequena, atrevida e farta como ela sempre foi. Não me admira se aqueles pequis, já na próxima safra, tiverem um sabor diferente. Entre a casca dura e os espinhos do caroço, existira um gosto de saudade impregnado naquela polpa amarela.
Tão amarela como a luz do sol que naquela tarde cedeu espaço para a chuva chorar a dor da perda.
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