08/06/2008 - A extinção das cartas
Estou a ler um livro de cartas enviadas e recebidas por Vinícius de Moraes, organizado por Ruy Castro. Cartas escritas para a família, para os amigos, para as mulheres amadas. O livro foi um presente de meu pai. Trouxe-o comigo do nosso último encontro há quase um mês e, por diversas vezes, já o visitei. Debruçado sobre este livro, descobri que o mundo perdeu muito com o advento do telefone, da internet e de outros meios de comunicação do chamado tempo moderno. Não vou citar números, para não deixar o texto um daqueles relatórios chatos, mas as cartas foram praticamente extintas de nosso cotidiano.
Acabou-se o tempo em que cartas eram escritas à noite, a luz da lua ou de uma vela ardente, colocando mensagens de carinho, afeto e amor no papel. Há quem escrevesse à mão, chegando a aprimorar a letra em cadernos de caligrafia, e quem recorresse à velha máquina de datilografar. Para se inspirar, havia quem escrevesse na janela diante de uma bela paisagem, entre um uísque e outro, ou, até mesmo, ao lado de uma xícara de chá. A fumaça medicinal do chá impregnando nas linhas, curando a distância. Havia quem fosse mais longe e espirrasse perfume nas cartas ou beijasse as palavras para deixá-la ainda mais pessoal. A carta era praticamente um pedaço do corpo de quem a escrevia.
Havia cartas que eram para ser lidas em voz alta, no meio de uma roda de pessoas, e outras que eram lidas com olhos de sigilos. Notícias de casamento, de nascimentos, de óbitos, de enfermidade, de negócios, de formatura, de milagres, de viagem e declarações de amor percorriam longas distâncias guardadas por um envelope. Na carta cabia de um tudo, da mais dura realidade ao mais louco sonho. Não havia limite a ser obedecido.
Ir ao correio, escolher o selo, despedir-se da carta como quem se despede de uma pessoa querida. Enviar a carta como quem envia um abraço, um sorriso, um beijo. E dali em diante, começava a angústia. Será que a carta chegou ao destino? Como foi a sensação de quem a recebeu? Será que o(a) destinatário(a) gostou do que leu? Será que chorou? Será que sorriu? Será que vai mandar resposta? A espera pelo carteiro, a vigília na caixinha do correio, a sensação do desconhecido era o que havia de mais mágico nisso tudo. Embora fosse sofrível, era mágico. A sensação de se sentir correspondido, lembrado, não tinha preço.
Hoje, um telefone foiça o tempo da espera como se foiçasse hastes de trigo. Do outro lado da linha, a voz aproxima distâncias incalculáveis nas horas mais prováveis. Os celulares não deixam a menor margem para a improbabilidade. A qualquer hora, em qualquer lugar, você localiza quem quer que seja. A seu modo, a internet, por meio de e-mail ou programas de conversas instantâneas, além da voz, permitem que um pessoa veja a imagem, em tempo real, da outra pessoa. Além disso, vôos domésticos a preços acessíveis possibilitam o encurtamento do espaço físico. Há de se admitir que os encontros nas estações de trem eram muito mais românticos do que os saguões dos aeroportos.
De fato, o mundo parece que ficou menor. Isso tem seu lado bom, mas também tem o outro lado da moeda. Afinal, o mundo perdeu em encantamento. Tudo é para agora, tudo é instantâneo, tudo é possível. Com isso, o cotidiano se torna sabido e previsível demais. E já que comecei falando de Vinícius, o mundo perdeu, sobretudo, em poesia. Hoje, as conversas são superficiais e, por que não, banais. Até mesmo a linguagem perdeu a sua construção estética e o peso de seu conteúdo, tornando-se um amontoado de códigos que sequer rimam.
Acompanhe meu raciocínio: com o encontro diário, ninguém mais precisa colocar seus sentimentos no papel. Afinal, já se está em contato direto com quem deseja, falando, pessoalmente ou por meios que se aproximam disso, o que sentem. Ou seja, os sentimentos não precisam mais ser fermentados a ponto de chegarem ao mais puro sabor. E o mais grave: com a falta de desencontro, há o enfraquecimento da saudade. Quase ninguém sofre de sauuudaaaadeeee hoje em dia. As cartas e o seu tempo de ir e vir eram a prova vida da existência dessa falta, desse desespero, desse sentimento sem nome em muitas línguas.
Ah! Esse excesso de informação e conhecimento sobre o outro leva a uma falta de assunto nos encontros. As conversas se tornam mais rápidas e o que seriam cartas se transformam em silêncios. De fato, o mundo mudou. O progresso, a evolução, a modernidade tem dessas coisas. Às vezes pensamos que essas coisas fazem um bem danado, mas, no fundo, tornam a nossa vida mecânica demais. Hoje, as caixas de correspondência se tornaram depósitos de contas a pagar. Atualmente não há nada mais impessoal do que o material trazido pelo carteiro.
Se Vinícius de Moraes tivesse vivido nos dias de hoje, com certeza teria bebido um pouco mais. Afinal, é angustiante viver em um tempo que caminha contra a poesia. Antigamente, as cartas aproximavam a poesia, o sentimento, o afeto das pessoas mais comuns. Hoje, tudo isso se quebrou. As previsões do século passado se confirmaram. Os robôs luminosos e inteligentíssimos não dominaram o mundo, no entanto a humanidade foi robotizada e não percebeu. É uma pena poetinha, é uma pena que as cartas foram extintas.
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