Daniel Campos

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Vela-me

Quatro velas ardem ao meu lado
Quatro velas amareladas pelo tempo
E minha pele esbranquiçada
Arde minha falta de tempo
E o que é mesmo o tempo?
Ah! Deixa isso pra lá...
Minhas mãos
Que sempre andaram separadas
Seja pela distância anatômica
Seja pela distância ideológica
Direita e esquerda
Seja pelo ódio e pelo desejo
De serem tão iguais
Minhas... Minhas mãos nunca... Nunca!
Nunca estiveram tão unidas
Como agora
As velas queimam em chamas
Vermelhas, amarelas, azuis
E ainda dizem que o luto é negro
E ainda dizem que o fim é sombra
E ainda dizem tantas outras tolices
Aqui estou,
Nessa falta de espaço,
Com sentimentos grandes demais
Para se acomodarem nesse retângulo
Ausente de ângulos retos
Uma caixa de madeira ridícula
Uma caixa tão ridícula quanto o fato de um coração
Passar 10, 20, 30 anos... uma vida toda
Preso numa caixa torácica
Pulsando por alguém
Que se diz seu dono
Pra depois se calar
No cerne de uma madeira
Que já nem se importa
Se estamos na primavera
Ou em pleno inverno
Dinamarquês
Se ao menos essa caixa
Fosse cortada por Ricardo Almeida
Fosse moldada nos túneis de vento de Maranello
Fosse pintada por um artista plástico qualquer
Seria, no mínimo, mais reconfortante...
Ah! E esse verniz todo
Só para dar trabalho aos cupins
Chamem, chamem os cupins
E que, ao menos, a eles
Essa madeira tenha algum sabor
As velas queimam
Como se queimassem
Os pecados
Que não posso mais pecar
As velas queimam
Como se queimassem
Os amanhãs
Que eu não posso mais esperar
As velas queimam
Como se queimassem
As entregas
Que fiquei de lhe entregar
Em nome de patri,
Fiti e espiriti santo
Rezas e mais rezas
Palavras de consolo
Soluços e silêncios
Dividindo o mesmo teto
E toda aquela dor
Plástica e intrínseca
Parece ter sido o fruto sagrado de um crime
A maçã de Eva
A mordida de Adão
Um crime com dolo
Praticado
Por quem partiu
Partir, eis o verbo
Dentre aquelas quatro velas
Dispostas
Como anjos da guarda
O que se vê são partidas
Partilhas
Partes
De um todo que não mais me pertence
De agora em diante
Meus olhos
São os olhares que ofertei pela vida afora
Meus braços
São os abraços que tatuaram outras peles
Minha voz
São os poemas que lancei às quatro luas
Poemas
Poemas
Poemas
Eu me doei neles a vida toda
Eu fui a veste e o ventre
De cada poema
Eles nasciam das minhas mãos
Como seu eu nascesse de mim
Dessa forma, fui injusto com a vida
Nasci por incontáveis vezes
Em versos livres e métricos
Enquanto morri apenas uma vez
E morri ainda sem rima
Na verdade, não morri
Porque a morte não vem buscar
Versos
E nos meus versos
Eu vivo
Vivo os teus gestos
Vivo os teus perfumes
Vivo os teus beijos
Porque todos eles ficaram reféns
Dos meus poemas
Se quiserem, condenem-me aos quintos dos infernos
Por ter sido um seqüestrador de momentos
Por ter transformado o breve em eterno
Por eu ter me convertido à inspiração
Por ter me deitado na cama com a poesia
E abusado dela de todas as formas
As velas ardem
Nos polens de parafina
As promessas dos mensageiros do paraíso
As promessas dos barqueiros do demônio
E agora?
As sagradas escrituras
Ou a prosa de Dante Alighieri?
Ah! Os mistérios se tornam mais próximos
E eu, de certo modo, aproximo-me dos sonhos
Que não me couberam
Quem mandou sonhar demais
Quem mandou amar demais
Quem mandou acreditar demais
As velas ardem
No rosto mal dormido dos que me espionam
Como agentes da inteligência secreta
As expressões faciais
Misturam-se ao cheiro das flores ordinárias
Que se misturam ao desespero pornográfico
Que se misturam ao cheiro sedutor do café
Alguns dizem coisas que nunca tiveram coragem
Outros dizem o que eu cansei de ouvir
Outros ainda mentem
Eu quero rir
Mas não posso
Eu quero ir embora
Mas sou obrigado a ficar aqui
Eu sou o protagonista
Sem meu corpo
Podem fechar as cortinas
E aplaudirem ou vaiarem
O meu destino
As velas parecem não acabar
As horas parecem ganhar
Mais voltas
E eu sinto ciúme das velas
Porque elas ainda podem lhe oferecer
Suas chamas
Cafajestes
Enquanto eu, aqui estendido, pareço tão apagado
Tão estático
Tão nada
Ah! Quero acabar logo com isso
Tomem minhas doses de Black Label
Ouçam meus discos de Vinícius
Rasguem minhas páginas de Neruda
Leiam e releiam minhas entranhas
Vasculhem minha alma
E afirmem:
Eis aquele que amou mais do que pôde
Mais do que pôde
Mais do que pôde
Mais do que pôde
Vamos acabar logo com isso
Mas antes que meus amigos me levem em seus ombros
Por favor, deixa cair em meu rosto
Uma lágrima fria da tua saudade...


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