Daniel Campos

Imprimir Enviar para amigo
Uma taça de traição

Os ponteiros do relógio, embaralhados e em silêncio. Numa lentidão de pôquer, avançavam para além das duas horas. A noite que não se sabia, se noite ou madrugada, passava em tons escuros e desertos. Como de costume, quando ela chegasse não precisaria tocar campainhas, machucar a mão na porta, gritar entre as lanças do portão... bastava encostar seu corpo na porta e... e a porta ganharia o ângulo de um decote. Diante dela, os ponteiros do relógio desapareceriam. Diante dela a noite entraria numa espécie de depressão pós-parto. Atrás dela não existiriam trancas, cadeados, segredos...

Quando ela entrasse, ninguém saberia. Nem a velha da casa da frente que ficava entre cortinas com olhos espiões nem o cachorro excomungado que procurava restos de comida nem o bêbado que cantava uma música sem letra. A noite, ocupada com sua crise, não testemunharia nada. Então, ela viria sem testemunhas e sem satisfações.

Ela chegaria com um silêncio cigano, embora não lesse cartas, mãos, bolas de cristal. Ao contrário, ela se deixava ler. E eram tantas linhas, tantos traços, tantos mistérios escondidos naquele corpo impregnado de cólera. Diante de seus cabelos loiros, a noite que não se sabia, se noite ou madrugada, afundaria em sua crise de identidade. Noite? Madrugada? Alvorada? Quem sabe, Dia. Seja lá o que seria decidido, era inegável a pele clara da noite.

Chegaria sem nada para contar. Todas as coisas já estavam contadas ou não precisavam ser contadas. Viria sem fotografias ou projetos de vidas. Viria somente com seus traços, desenhos e labirintos. Viria fria, como se tivesse algo de morte. Se bem que todas as mulheres, que caminham pelo deserto estendido numa noite em crise, têm algo de morte. A luz do abajur agonizaria em seus olhos claros. Quando sua presença fosse percebida estaria vestida com uma taça de vinho. Vinho tinto e doce. Como sangue sem dor.

Não faria juras, tampouco me pediria qualquer perjura. Não haveria nada de piegas em suas atitudes e se houvesse romantismo ele ficaria escondido debaixo da cama. De repente, como de costume, voltariam os ponteiros do relógio, o escuro da noite, as trancas da porta. Aqueles pedaços de hora seriam lembrados como um coma. Um coma sem prevenção de uma vida cardíaca.

Como das outras vezes, teria que partir. E quando ela partisse a velha senhora estaria com olhos atentos numa brecha da cortina, o cachorro latiria seu latido miserável e o bêbado a convidaria para dançar. Desmemoriada, a noite não a chamaria pelo nome. Numa falta de adeus, ela sairia em meio ao caos. As desculpas seriam as mesmas.

Sairia sem levar nada, sequer um aceno de mão. A porta, com todas as trancas possíveis, rangeria. De medo ou de prazer. Ela tropeçaria em si mesma. Os cabelos loiros fugiriam do escuro. Ela não estaria mais com a pele fria, não estaria mais sozinha, não estaria mais sob o efeito entorpecente da própria feminilidade. Partiria e não deixaria nada, senão um resto de vinho na taça trincada. Vinho branco e seco. Como dor sem sangue.


Comentários

Nenhum comentário.


Escreva um comentário

Participe de um diálogo comigo e com outros leitores. Não faça comentários que não tenham relação com este texto ou que contenha conteúdo calunioso, difamatório, injurioso, racista, de incitação à violência ou a qualquer ilegalidade. Eu me resguardo no direito de remover comentários que não respeitem isto.
Agradeço sua participação e colaboração.

voltar