Daniel Campos

Imprimir Enviar para amigo
21/09/2008 - Uma senhora de coração azul

Lá vem pela estrada uma senhora de sombrinha aberta ao sol trazendo, por entre a penumbra, um semblante sério que logo se desmancha numa afabilidade de açúcar. A senhorinha tem passos pequenos e caminha numa leveza que, há primeira vista, parece volitar. Traz consigo aquela velha Minas dos contos de Guimarães Rosa que já não contam mais. Uma Minas que pulsa em seus gestos, em seu falar, em seu uai mais bem afinado, sô. Vem de sandália baixa, numa simplicidade tão nobre de se ver. E sem perder a postura de professora, vem ensinando o amor para aqueles que cruzam sua estrada. Uma sensação de ternura, de aconchego, de contentamento, de doação caminha ao seu lado e contagia o mundo que, com todo respeito, abre passagem para ela prosseguir tecendo sua estrada, que é de barro, sopro e fé.

Numa espécie de mágica, a estrada, que era de pedra, se transforma em um caminho de crochê. Em cada ponto, um sorriso. Em cada ponto, um obstáculo vencido. Em cada ponto, um futuro que vai ficando mais próximo. E ela não é de dar ponto sem nó. As coisas da vida se refletem no reflexo de seus óculos avermelhados. Ah! Quanto de mundo não quis mais sair e ficou ali, pra sempre, morando em seus olhos. Boa de conselho e de beliscões como ela só, traz sempre um aprendizado em sua passada. Lá vem ela, dizendo para não ter medo nunca, para acreditar sempre, para não desistir jamais. De longe, a visão se turva e a gente não sabe se as flores estão em suas vestes ou na beira da estrada. Estrada branca. Estrada amarela. Estada azul. Diante de seus passos, a lua é azul, a árvore é azul, o veleiro é azul, a paz é azul, a saudade é azul e a música é azul no canto de uma arara-azul que tinge o horizonte. Confesso que perante tanta azulidão chego a desconfiar se seu coração pulsa vermelho ou não. Será azul?

A brisa, não menos azul, roça sua face e espalha um perfume de flor de laranjeira pelo ar. Devota de Auxiliadora, lá vem ela pela estrada trazendo um sentimento filial em suas mãos e uma medalhinha da mãe-rainha presa no avesso de sua roupa. Na magia das Minas de tantas crenças, ela vem numa capacidade ímpar de por fim as dores e aos males do mundo. Embora real, é de uma subjetividade capaz de criar caminhos onde não existem caminhos. E ela vem altaneira pela estrada trazendo um sertão mineiro, que é um sertão mais ameno, com matas, passarinhos e veredas rodeadas de buritis. Há toda uma geografia e um misticismo nos passos dessa senhora que vem se aproximando estrada adentro. Em seus passos, os seresteiros pontuam um tempo que não se conta no bailar dos relógios. Em seus passos, o ritmo de uma voz que, ao fechar dos olhos, ainda ecoa no coral do Santuário do Bom Jesus. Em seus passos, o gosto do sorvete na pracinha do coreto depois da missa. Em seus passos, o canto do silêncio de uma discrição que constrói seus gestos, palavras e passos. Ah! Como é bom avistar aquela senhora vindo pela estrada na beleza de unhas feitas, batom dosado e um cabelo, mais que cuidado, volteando no ar.

Pela estrada afora, ela tem muitos nomes e invocações, mas a expressão "mãe" talvez seja a que melhor defina a grandeza dessa mulher que caminha em passos pequenos e correntes como o São Francisco. De fato, seu espírito é cheio e profundo de vida e encantamento assim como o rio que corta seu destino. E o melhor é pensar que ela é a nascente da mulher amada. Ela vem caminhando e ainda tem tempo de costurar um vestidinho para a filha, pedalando na máquina de coser. Ela vem caminhando e se deixa levar pelas notas que deslizam pelas mãos da filha num piano francês, inglês, mineiro... Lá vem ela, de sorriso cumprido como um trem, trazendo em seu colo uma boneca de carne e alma. Ela vem e carrega nos braços aquela pequenina que mais à frente a leva pelas mãos. As duas vão caminhando e se protegendo e se gostando e se fortalecendo e se misturando, a cada dia mais, ao longo do azulamento dessa estrada.

Lá vem ela, estradeira, entre lembranças, perfumes e sabores. Lá vem ela, dourando o alho que recebe já picadinho e descascado na porta de casa junto com uma boa quantia de corante de urucum. Lá vem ela levando a tiracolo uma caçarola de feijão com torresmo que dá água na boca só de imaginar. Tudo acompanhado de mandioca amarela e uma boa carne de sol, que ela escolhe a dedo no açougue que já se acostumou com o seu passar. Isso sem falar de uma boa farofa de mandioca torrada, uma jarra de suco da estação e um doce de leite de cortar que se tornou especialidade da filha. Lá vem ela, de sacola nas mãos, trazendo um cheiro que é verde e uma pimenta de cheiro lá da vendinha. Lá vem ela indo e voltando da casa das irmãs que são personagens de destaque em seu diário de bordo. Lá vem ela, de braço dado com sir Philomeno, num doce e cadenciado romance. Lá vem ela com seus cachorros coloridos que balançam a cabeça para cima e para baixo, para baixo e para cima num movimento constante de sim para os atos daquela senhora que passa em passos de bibelô.

Lá vem ela à procura do jardim de rosas da sua mãe que ficou perdido em pétalas vermelhas, amarelas, rosas, brancas e alaranjadas pelo caminho. Lá vem ela chacoalhando a maçaneta, para ver se a porta fechou direitinho. Pudera, as delícias e prazeres de um tempo que ela guarda naquela casa não podem escapulir. Ela vem chegando pela estrada trazendo uma luz azul como se fosse a guardiã de uma esperança que não morre nunca. Em seu passar, a certeza de que dias melhores estão por vir. Olha, olha, olha que ela vem caminhando bem ali, no miolo dessa luz que irradia e acalenta. E ela vem como um coqueiro entregue ao vento azul. Vem por entre montanhas azuladas e garimpos de sáfira e topázio. Cor-luz, vem cheia de prendas numa ciranda a rodar pelo chão, pelo céu e pelo mar. Lá vem ela com a paciência do mundo todo. Lá vem ela matutando um jeito de o mundo ser ainda mais feliz. Lá vem ela por entre crianças, flores, janelas e quintais. Lá vem ela espreitando o sol nascendo pela larga da manhã. Lá vem se equilibrando pelos trilhos de um trem de ferro. Lá vem ela percorrendo os caminhos da firmeza de dona Alda e do lirismo de seu Oscar. Lá vem ela trazendo Christo no nome, na caminhada, na fé. Lá vem Maria Clélia subindo e descendo pela estrada de um horizonte azul de todo azul.

Observação do autor: Este texto é uma pequena homenagem a essa senhora que tornou-se minha sogra. O título do texto, mais do que fazer uma brincadeira em torno de sua cor predileta, o azul, simboliza os passos harmônicos que vem deixando pela estrada, numa suavidade capaz


Comentários

Nenhum comentário.


Escreva um comentário

Participe de um diálogo comigo e com outros leitores. Não faça comentários que não tenham relação com este texto ou que contenha conteúdo calunioso, difamatório, injurioso, racista, de incitação à violência ou a qualquer ilegalidade. Eu me resguardo no direito de remover comentários que não respeitem isto.
Agradeço sua participação e colaboração.

voltar