Daniel Campos

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Uma fé, uma voz, um tempo

Os tons pastéis da igreja matriz se derramam pela praça. Uma praça com coreto, fonte e bancas de jornal. Uma matriz de escadarias e torres que lembram as fortalezas que um dia, alguém nos contou em histórias. Pelos arredores da matriz, uma voz pausada. Uma voz que é metade som, metade silêncio.

Havia quem passasse sorrindo, havia quem passasse dançando, havia quem passasse com pressa. E como passavam, morriam. Consolo para os que passavam amando, amando não importa o que, se um alguém, se um tempo, se uma música.

Não importava o credo e os ritos de quem passava. Quem passava por ali, morria um pouco. Não falo da morte que finda uma vida, mas das nossas mortes diárias. Com o tempo, nos despedimos de nós mesmos. A morte de um minuto, de um dia, de um ano... E das nossas mortes nascem às lembranças.

Talvez a vida seja feita de associações. Em determinados momentos é impossível se pensar em x sem se lembrar de y. Algumas dessas associações são tão fortes que nos marcam pela vida afora. Uma roupa lembra um lugar; uma estrela perdida na noite lembra uma promessa; uma música lembra um tempo. E dentre essas associações não há como imaginar a Matriz de São José sem lembrar uma voz.

Domingo de missa. Antes da tradicional macarronada e dos demais acontecimentos típicos do domingo, acontecia a missa. O sino chamava. O dia amanhecia devagar. As notícias se mostravam novas nos jornais da praça da matriz. Os conhecidos de missa ou de outro lugar se cumprimentavam; senhoras mais fervorosas rezavam terços e as crianças bocejavam sonolentas no colo da mãe.

Sem maiores atrasos, o coral tomava o seu lugar. E havia até um pavarotti de cabelos grisalhos e corpo esguio dentre aquele coro. Como de costume, o povo se levantava e os olhares buscavam o corredor da matriz. E quem surgia não era uma noiva com os olhos cobertos de lágrimas ou um louco gritando milagres. Sem pretensões de cantor, a voz do padre chegava antes dele próprio. Podia estar léguas de distância, mas a voz do padre poderia ser reconhecida com extrema facilidade. Uma voz pausada. Uma voz alongada. Uma voz cantada. Depois dos galos e dos beijos enamorados, aquela voz dava às boas vindas ao domingo.

Assim como naquelas histórias passadas em cidades pequenas de praça de matriz, padre gilberto se transformou numa dessas figuras que se tornam parte do folclore da cidade. Tão comum quanto encontrá-lo de boné caminhando pelas calçadas do centro ou no volante de um fusca era encontrá-lo com a aura do contentamento. Um desses padres que cumprimentam os outros pelo nome, que não falam em dinheiro, que não enfeitam as missas em troca de holofotes. Um gilberto, de tantos gilbertos que andam por aí, simplesmente, contente.

Hoje passo em frente às escadarias da igreja matriz e ela está mais calada. Padre gilberto foi levado pela teoria dos encontros e das despedidas. No entanto, ainda me lembro daquela voz pausada que se espalhava pelo silêncio da Matriz. Caminho e os tons pastéis da igreja de duas torres e a sonoridade das palavras do padre se confundem na memória. Caminho e escuto uma fé, uma voz, um tempo a dizer: "como se vive, morre".


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