Daniel Campos

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24/08/2008 - Um pirata sem mar

O menino entristecera de uma vez. O pai não sabia o que fazer. A mãe chorava pelos cantos todo o pranto que restava em seus olhos, já fundos. Já tinham recorrido ao clínico geral, ao terapeuta, ao psicólogo, ao cientista, ao padre, ao mágico do circo e ao morro em dia de carnaval. Mas o menino não sorria, só tinha os olhos lançados ao céu das cotovias. Não queria saber de estudar, de passear, de jogar, de conversar, de cochilar... Não nem mesmo namorar, embora seu comportamento fosse digno de um apaixonado de sentimento tão convicto quão aflito. E isso levava todos à loucura. Já diziam que ele ia definhar até morrer.

Chamaram o melhor amigo que ele não tinha, chamaram a avó que não escutava direito, chamaram a professora do jardim de infância, mas o menino não disse uma palavra sequer. Há horas, dias, semanas, meses estava assim. E ninguém conseguia descobrir o que ele tinha. Não gritava de dor, mas também não gritava de nada. Era de dar pena que um rapaz sadio, inteligente e novo fosse se entregar a uma depressão sem fim. Não havia quem diagnosticasse o contrário. Depressão! Mas qual a causa? Eis a questão que nem Shakespeare conseguiu responder. Otelo, que passou por lá, que o diga.

Foi então que o pai aceitou um conselho do professor do tio do primo da cunhada da irmã do vizinho de um amigo que conheceu outro dia - procurar um hipnótico. Sem ter mais a quem apelar, lá estava a família descendente de húngaros na sala de espera do consultório esperando o resultado da tal hipnose. O pai andava de um lado para o outro, assim como o relógio na mão daquele homem carrancudo que dizia: durma, durma, durma... A mãe, já desacreditada de tudo, lia uma dessas revistas que falam da vida dos artistas.

O diagnóstico foi o mais absurdo possível: ele estava com saudade do mar. Como assim? Ele nunca morou na praia. Aliás, ele nunca foi ao litoral. Nem de piscina ele gostava. Aquilo só poderia ser uma fraude. E uma fraude que custara um bom dinheiro daquele homem que mexia no ramo de computadores. Seja como for, todo sacrifício era necessário para ver o filho curado e feliz. No entanto, a receita de procurar um oceano não era dos investimentos mais confiáveis. Já imaginou você pagar para ouvir alguém dizer que seu filho foi um pirata em outras vidas e agora sentia falta desses tempos.

Depois de ofenderem o hipnótico com poucas e boas, voltaram para o apartamento número 509 do condomínio de classe média onde moravam há mais de dez anos. E o menino, mesmo depois de voltar à vidas passadas, continuava com os olhos lançados para longe. Não dizia nada. Não reclamava de nada. Não pedia nada. Estava imerso em seu mundo. Seu mundo pirata. E dali da janela, imaginava seu navio, com velas estendidas, e uma tripulação formada por mais de trinta pessoas. Ao seu comando, os marujos iam para lá e para cá.

Avistava ilhas, ouvia sereias, saqueava outras embarcações e procurava tesouros em terras distantes. Tinha olho de vidro e perna de pau, mas isso não o impedia de amar uma mulher em cada porto. E quem o ofendesse, ele tirava sua espada da bainha e fazia o infeliz andar na prancha direto para a boca de um tubarão cinza, que vivia rondando seu barco. E para comemorar, tomava uma caneca de rum. Era esse o seu mundo. Um mundo que ficará para trás. Dali, do 5º andar daquele apartamento, ele navegava em um profundo vazio. A sua alma estava longe e a carcaça de seu corpo, sem ninguém no leme, estava à deriva.

De repente, começou uma chuva com direito a muitos trovões e rajadas de vento. Era como se o mar estivesse no céu. Um mar bravio e soluçante. E ele, mais do que depressa, queria embarcar naquela aventura. Depois de longos meses de seca, a chuva voltara com força total. Chovia oceanicamente. E navios, tubarões, marujos, ilhas, tesouros estavam ali do lado de fora da janela. As nuvens trombavam umas nas outras como ondas em corais. Os clarões eram espumas da lua de prata que guiava aquele capitão sem mar. Para espanto de seus pais, ele pegou uma página do jornal do dia, fez umas dobraduras e produziu um barco. Um barquinho de papel. Concentrou seus sonhos ali, sorriu de forma contagiante, abriu a janela e pulou rumo ao mar que viera lhe buscar.


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