Daniel Campos

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Trinta e nove graus

As amigas a convidavam para boates, pizzarias, cinemas, barzinhos e violões... Mas ela nunca aceitava convite algum. Preferia ficar em casas. Não via o momento de encerrar o expediente, assinar o ponto e pegar o caminho de volta. O seu trabalho no funcionalismo público, entre um amontoado de papéis monótonos era bem menos interessante do que sua casa. Não saia para nenhum hapy hour, para nenhum aniversário, para nenhum convite mais indiscreto. Era irredutível na sua volta para casa. Ninguém a entendia. Talvez nem ela. Ela até tentava, mas seu íntimo, numa relação freudiana entre ig, ego e superego, levava-a de volta para casa.

Subia os três andares de escada. Não tinha paciência de esperar o elevador deslizando preso por aqueles cabos. Enfrentava 76 degraus. Mas não via a hora de rodar a chave no feche-ecler de sua porta. A porta dava para uma sala com uma longa janela. Era um absurdo de janela. Quase obscena. Quem não estava acostumado, chegava a se sentir ameaçado, envergonhado e até desafiado.

Mas quase nunca havia mais alguém ali além daquela mulher de cabelos avermelhados, como que tingidos pela temperatura que varria seu corpo. Espantosos 39 graus. E o casaco, os sapatos, a bolsa iam ficando pelo sofá mesmo. Não ia ao chuveiro, à geladeira, à cama... Para ela, a casa se resumia a sala. Ou melhor, a janela da sala.

Para completa falta de pudor, ela retirou, segundo aquelas paredes, com as próprias mãos, as cortinas, os forros, as rendas e os babados daquelas janelas despudoradas. Tirou aquelas vestes todas como quem tira a roupa da pessoa amada. Os trilhos das cortinas se equilibravam em uma nudez raquítica no alto da parede e esperavam um trem que nunca chegava.

Ela pagava uma faxineira com a condução de que ela limpasse aquela janela de vidros imensos todos os dias. O único serviço da mulher da faxina era limpar aquela janela. Não precisa limpar o chão, o quarto, o banheiro, lavar, passar ou cozinhar. Mas ficava por conta da janela. Não tinha medo de ser atravessada por uma bala perdida, por um avião terrorista, por um cupido sem direção. Ficava colada naquela janela, chegava a dormir ali, com os olhos quase se cortando naquele vidro.

Dali, ela acompanhava todo o movimento dos bêbados, das prostitutas, dos fazedores de macumba, dos vendedores de droga, dos usuários do motel da esquina, dos pivetes que cantavam as moças com palavras e passadas de mão, dos carros perdidos entre luzes brancas e vermelhas.

O seu orçamento dava para sair daquele lugar com folga. Podia procurar algo melhor, mas preferia ficar ali. E dali, tinha vontade de transpor aquele vidro, de se jogar, de voar. Vontade de se jogar aquele mundo tão desejado quão proibido.


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