Daniel Campos

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23/11/2008 - Torre de esmeralda

Todo fim de tarde é a mesma história. Praticamente, um ritual cumprido religiosamente. Uma menina de nove anos aproveita que a mãe se perde nas contas do terço e deixa a parte central da igreja com a desculpa de brincar com as outras crianças, que correm pela pracinha de paqueras e pipoqueiros. No entanto, seus passinhos tomam outro destino - a torre da igreja. O sino está desativado há alguns anos, mas a vista da cidade dali de cima é capaz de dobrar, badalar, ensurdecer corações. Ela já havia contado. É preciso enfrentar cento e oitenta e três degraus para se chegar ao topo daquele seu castelo de cartas.

Por falar em chegar, ela chega cansada, mas logo que avista as costas dos telhados avermelhados, as copas de algodão-doce das árvores, as pessoas do tamanho de formigas passeando pelas ruas, a menina de franjinha serelepe recobra o fôlego. E fica ali, quietinha, sentada em uma antiga cadeira de madeira, que servia de repouso para o tocador de sino. Como a mãe gostava de passar horas dentro da igreja, seja contemplando, rezando ou assistindo missa, a menina tinha tempo suficiente para acompanhar o final da descida do sol e o esplendor da lua, que, daquele ponto, parecia-se com a barriga de tia Dorinha, que se pudesse tinha apedrejado a cegonha antes mesmo de ela ter pousado no seu quarto.

Ah! Não conte a ninguém, mas tamanho era o desejo dela em pular dali e cair na lua. Queria saber se a lua guardava um menino igual a barriga da tia Dorinha. Queria brincar de amarelinha em suas crateras. Queria escorregar naquela brancura toda. Queria experimentar o seu gosto e sair contando para as estrelas. Aliás, ela gostava de conversar com as estrelas. Chegou ao ponto de colocar nome naquelas luzes pontiagudas e fazer daquela torre seu diário. As estrelas sabiam de seus medos, de suas bobagens, de suas ilusões, de suas felicidades, de seus sonhos. Ela confia mais nelas do que no próprio espelho. E há toda uma cumplicidade nessa relação. Afinal, estrela alguma jamais revelou um segredo seu.

Embora a nave da igreja estive lá embaixo, aquele cubículo era repleto de uma oração inocente. Ela pedia por sua mãe, que andava com tantas tristezas a tiracolo. Pedia pelo avô, que sofria de uma tosse sem fim. Pedia pelo irmão mais velho, que queria ser doutor. Pedia pelo irmão mais novo, que tinha vontade de tudo o que via. Pedia por sua casa. Pedia pelas pessoas que sempre ajudavam sua família. Pedia pelos que estavam na guerra. Pedia pelos pais que perderam os filhos. Pedia pelos filhos que perderam os pais. Pedia pela lua, para que ela continuasse a pontear a escuridão. Pedia pelos cachorros de rua. Pedia pelo padre. Pedia pela professora. Pedia pelo dia que ainda nem dera sinal de existência. Pedia saúde, coragem, alegria e, principalmente, força para voltar ali.

Pudera, ali, para ela, era mágico. Quando estava naquela atmosfera era invadida de tantas vontades. Saltar de pára-quedas, voar pela cidade, gritar de toda altura, dançar, cantar, pular, tocar o sino. Só que tocar o sino era proibido. O padre, que assumiu a paróquia há três anos, não gostava de barulho. Chegou a maldizer o tocador de sino. Dizia que Deus gostava de silêncio e oração, não de bandalheira. Por isso, se tocasse o sino colocaria em risco o seu esconderijo e a casa de Esmeralda. Ah, essa é uma boneca velha, de pano, com um vestidinho verde, que ela fazia questão de deixar na torre. A boneca morava ali. A menina dizia que era para as estrelas não ficarem sozinhas, sem ter com quem conversar.

A boneca representava a sua vontade, o seu eu, o seu destino. Assim como Esmeralda, se pudesse, moraria naquela torre. No entanto, seu conto de fadas acabava em pouco mais de uma hora. Era preciso descer para não levantar qualquer desconfiança. Esmeralda ficaria ali, tomando conta da torre, do sino, das estrelas, da lua, do dia que estava para chegar. Antes de descer, um pouco mais de silêncio e olhos correndo para além das estrelas. Um abraço forte na boneca, um suspiro e um sorriso choroso escorre pelo seu rosto pequeno.

O sentimento era de que aquele céu a abraçava, a colocava no colo, cantava para ela dormir. E todo esse apego tinha um propósito. Aquele foi o último lugar em que seu pai a levou antes de sumir. E ela o procurava entre as estrelas, entre as frestas da lua, entre as faíscas dos cometas, entre a escuridão de uma vida que se calou. Quando esteve ali pela última vez no colo de seu pai, o sino soou. E ela ainda ouve ecos pelo seu corpo e pelo sopro do vento que chega até ali, como que trazido pela boca de um pássaro invisível.


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