Daniel Campos

Imprimir Enviar para amigo
Pantofobia

Medo de bala perdida. Medo de juros bancários. Medo da cotação do dólar. Medo de se envolver demais. Medo de dar e de não dar esmola. Medo aéreo, terrestre, aquático e até subterrâneo. Medo do aquecimento global. Medo de calorias. Medo do estresse. Medo de andar na rua à noite e durante o dia também. Medo de sinal vermelho. Medo de não ficar desempregado. Medo de politicagem. Medo dos extremos. Medo dos ácaros. Medo do diferente. Medo da dor. Medo de lugares fechados e abertos demais. Medo de vento, de redemoinho, de furacões e de outras variações do sopro divino. Medo de ficar sozinho. Medos das flores do espinho. Medo do fracasso. Medo de fenômenos cósmicos. Medo de ser roubado. Medo do espelho. Medo do conhecimento. Medo da segunda-feira. Medo de estar sendo vigiado. Medo de se apaixonar. Medo de ser avaliado negativamente. Medo de pensar. Medo de envelhecer. Medo de sentir prazer. Medo de tecnologia. Medo de mudanças. Medo de sonhar. Medo de ter responsabilidade. Medo de ser tocado. Medo da exclusão. Medo da felicidade.

O medo, como um leão faminto, está à solta. Nos últimos anos houve uma grande expansão da idéia do medo, que antigamente se dividia apenas entre deus e o diabo, entre o castigo e o inferno. O medo, que tem a idade do mundo, modernizou-se e atualmente tem um "que" de fashion. É tão chique ter medo quanto tomar o chá das cinco. Afinal, o medo pertence às altas rodas sociais. O medo está no horário nobre da televisão e na capa da revista da última semana. Há o medo econômico de deixar de possuir (dinheiro, carro, jóia, status). Há o medo político que, na verdade, é uma maçã do éden na mão da oposição. Há o medo estético, atlético, cibernético e até o medo poético. Afinal, há o medo de que dentre tanto medo a nossa poesia se acabe.

Graças a muita ceva, o medo se tornou banal, democrático, de massa. Está ao alcance de todos que o vestem como um dos valores mais concretos da sociedade moderna. O medo é necessário e se apresenta em diferentes tamanhos, cores e formatos nas gôndolas do hipermercado do pavor mais próximo. Atenção: hoje, vivemos uma pantofobia. Isto é, medo de tudo e de todos. Disparem as sirenes, toquem as trombetas, cerquem-se de muros, grades, arames farpados, cercas elétricas, alarmes... O perigo paira no ar. Há uma inundação de adrenalina, um frenesi de aceleração cardíaca e muito tremor nas pernas, nas costas, nas pálpebras. E sem falar do suor firo escorrendo pela espinha, da boca seca, da necessidade de fechar ou cobrir os olhos, dos pelos arrepiados. E do medo nasce uma sociedade depressiva em constante estado de pânico, ou seja, em estado de fobia plena.

Fobos deita e rola. Fobos? Isto mesmo. O fruto grego da paixão entre o deus da guerra e a deusa da beleza. Da união entre Ares e Afrodite nasceu Fobos, o deus do medo. Desde criança, Fobos andava pelos campos de batalha, ao lado do pai, injetando covardia e medo nos corações inimigos. E fobos cresceu e cresceu muito. Embora não necessariamente com trincheiras e fuzis, vivemos a guerra do medo. Somos açoitados a todo instante, seja de dentro para fora ou de fora para dentro, pelo medo. Viver tornou-se um alto risco. Somos vítimas da máxima de que se há vida, há medo.

Se um dia existiu alguma civilização que não teve medo, devemos concluir que ela foi extinta. E extinta pelo tédio. Isso porque a falta de medo leva ao tédio da invencibilidade. O medo é o mais comum dos instintos e está associado à sobrevivência em seu mais amplo sentido, seja físico ou psicológico. Está presente nos animais (que de medo até se camuflam), nas plantas (que de medo até se encolhem ao menor toque) e nos seres humanos (que de medo até matam e se matam). Não há nada de nocivo no fato de ter medo, o "x da questão" é que esse instinto foi elevado à condição de cultura. E uma cultura sólida com uma infinidade de discípulos a defendê-la com unhas e dentes. O medo passa de pai pra filho, de amigo para amigo, é propagado pela mídia, pela igreja e até pela escola. Afinal, hoje em dia a palavra de ordem é "cuidado". Cuidado com isso, cuidado com aquilo... Quantas vezes já ouvimos e já falamos "cuidado" só nos últimos dias? É fácil perder a conta para responder a essa pergunta. E o medo está incrustado na sociedade moderna. O cuidado com o lobo mau e com o bicho papão impregna as crianças com o perfume do medo. E para cada fase da vida, há um medo mais atraente a nos seduzir. De fato, o medo seduz numa relação diretamente proporcional. Quanto maior a ameaça, maior a atração.

O medo domina, toma conta, muda as nossas direções e se alastra como fogo em palha seca. Depois de meteoros e dilúvios, o fim da humanidade pode se dar pelas mãos do medo. Se pudessem, os filhos do medo pagariam um bom dinheiro para viverem em bolhas de plasma ou de qualquer outro material digno de filme de ficção. Dali, isolados dos acontecimentos externos, a vida seria mais segura. Mas as bolhas invioláveis a prova de fogo, de tiro, de bomba nuclear transformariam a humanidade em bilhões de pequenas ilhas humanas separadas e cercadas por um oceano de medo. Mas não pense que os menos afortunados morreriam de medo. Tão logo fossem lançadas no mercado, far-se-ia de um tudo para possuir a bolha própria - desde vender a alma ao demônio até roubar a bolha alheia. E logo o governo criaria um programa de bolhas populares. Não tão confortáveis como as da elite, mas seguras o suficiente para apaziguar o medo e garantir alguns votos.

Vez ou outra, algum rebelde, com ou sem causa, deixaria sua bolha e sentiria o gosto da liberdade, mas seria fuzilado pela guarda nacional. Quem deixasse a sua bolha já seria considerado um terrorista de nascença. Em uma atitude mais moderada, os últimos românticos jogariam garrafas com mensagens nesse oceano. Mas quem iria ter coragem de sair da sua bolha para ler aquelas sandices? Quem seria louco para acreditar em declarações de amor, em sonhos, em paixões? Quem seria louco para enfrentar o medo e amar?

Quem?

Quem?

Quem?

Definitivamente, a sociedade está à beira de extinguir a felicidade, que vem sendo abortada pelo medo. Para os aventureiros a amar demais vale o conselho de Vinícius de Moraes de que "ter medo de amar não faz ninguém feliz". Coragem, posto que o medo de amar é o pai de todos os outros medos.


Comentários

Nenhum comentário.


Escreva um comentário

Participe de um diálogo comigo e com outros leitores. Não faça comentários que não tenham relação com este texto ou que contenha conteúdo calunioso, difamatório, injurioso, racista, de incitação à violência ou a qualquer ilegalidade. Eu me resguardo no direito de remover comentários que não respeitem isto.
Agradeço sua participação e colaboração.

voltar