Daniel Campos

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09/03/2008 - Luislinda de Todos os Santos

Faltam doze minutos para as três da tarde. Com uma caneta e um amontoado de papel em branco, chego ao décimo andar da Câmara dos Deputados. De frente a um jardim de inverno florido de pássaros e de uma janela panorâmica para a Praça dos Três Poderes, espero. De repente, daquele carpete verde, brotam duas orquídeas negras. A primeira, minha amada mais amada para valer. A segunda, desconhecida até então, seria aquela que me adotaria como mais um de seus tantos filhos.

Ao apertar a mão daquela senhora de passos firmes, escuto os gritos de escravos, algemados e torturados; calo-me no desespero de mulheres discriminadas e exploradas; sinto o suor de uma pátria miserável que "vai levando" e sofro a dor do preconceito que marca, a ferro e fogo, pessoas que, na teoria, são iguais. Diante daquele encontro, vejo que aquelas palavras bonitas da Constituição, no dia a dia de um povo guerreiro, não valem de nada.

Diante daqueles olhos, que já viram de um tudo, sou sugado para o submundo de uma realidade insólita. Sinto-me no meio de um navio negreiro, diante de situações vergonhosas e subumanas. Aquela senhora, cansada de tantas chibatadas, fala como uma espécie de Têmis (deusa grega da justiça) negra. Se eu não estivesse ao lado da minha esposa (que possibilitou este encontro) e de um fotógrafo, poderia jurar que havia sido levado para um outro tempo. Não estou mais na Capital Federal. Estou na Bahia, em plena escravidão.


Quando eu crescer eu quero ser juíza

Aos nove anos, uma menina negra chega à escola, tendo nas mãos o material para a aula de desenho. O professor, branco e ríspido, ruge dizendo que não foi o que ele mandou comprar. Acuada na carteira, a menina responde que aquilo era o que seus pais, uma lavadeira e um motorneiro de bonde, puderam comprar. Sem pestanejar, o professor sugeriu que ela deixasse a escola e fosse aprender a fazer uma boa feijoada na cozinha de uma branca.

Por um instante, silêncio. Em todos os outros, o riso, o deboche, o preconceito, o desrespeito, a discriminação, cada qual com um som mais ensurdecedor que o outro ecoando pela sala. A menina, com voz embargada, afirmou que o lugar dela era na escola porque, quando crescesse, seria juíza para impedir que outros sentissem aquela dor. Naquela pouca idade, ela sentia o furor, o peso, a intensidade daquela violência, mas ainda não sabia o nome daquilo tudo. O nome? Racismo.

Daquele momento em diante, a semente da justiça estava lançada naquela menina feita de sonhos, sentimentos e atitudes femininas e negras. O historiador e jurista Joaquim Nabuco costumava dizer que no Brasil existe uma obra difícil de destruir. A menina cresceu, tornou-se juíza e hoje, aos 65 anos, confessa que o nosso Judiciário deu uma contribuição muito pequena ao longo de sua história para colocar fim a essa obra chamada escravidão.


A lei áurea foi uma farsa

"Eu sinto na pele a dor da discriminação racial. Foram várias às vezes em que advogados pediram o cancelamento de audiências, ao saber que a juíza não era branca. Para mim, o pior dia dos negros brasileiros foi 14 de maio de 1888. No dia 13, os brancos viraram para os negros e disseram: vocês estão livres. Mas livres para ir aonde, trabalhar no quê? Onde iriam morar? Uma princesa branca decreta a Lei Áurea, mas ninguém se pergunta o que os negros iriam comer e vestir. Áurea vem de ouro, magnífico, feliz... É triste saber que nem a lei criada para libertar o negro preocupou-se
com sua felicidade."

Misture os preconceitos existentes diante da imagem de uma mulher, de uma negra, de uma divorciada, de uma pessoa de origem humilde, de uma nordestina e o resultado tem o mesmo nome daquela menina que aos nove anos foi humilhada pelo professor. A menina? Luislinda Dias Valois Santos. Mas, em se tratando daquela baiana de sorriso farto e cabelos rastafari, podemos chamá-la de Luislinda de Todos os Santos. Nada mais coerente, posto que a fé nos estudos, no trabalho, na humanidade e na justiça sempre moveu e alimentou essa juíza que é tão negra quão perseguida.

Atendendo a um pedido do destino, encontrei-me com aquela que foi escolhida para representar a mulher brasileira no Fórum do Mercosul e que até hoje é vítima do preconceito racial. Esse perfil é resultado de uma conversa franca, olho no olho, regada a muita emoção. Ao lançar os pensamentos e resgatar um pouco da história de Luislinda, nós, homens ou mulheres, negros, brancos ou amarelos, devemos nos inspirar na força de vontade, na luta, no orgulho de alguém que luta por uma nova realidade. Mais do que um perfil, essas linhas são denúncia. Uma denúncia social que implora por uma atitude.


Realidade nua e crua

No ano de 1942, nascem o beattle inglês Paul McCartney, o estilista norte-americano Calvin Klein e a escritora chilena Isabel Allende. No mesmo ano, no Brasil de baixo, das mãos negras de uma parteira nasce, na negra Salvador, aquela que seria, anos mais tarde, a única juíza negra brasileira a discursar na ONU. Ao nascer, aquela menina negra chorou um choro negro nos braços negros de uma periferia negra chamada Brasil.

Sua juventude não foi em nada diferente da enfrentada por muitas outras mulheres e muitos outros negros, em um país onde o salário de um deles é a metade do de um homem branco. Luislinda catou marisco, nas ondas do mar para levar dinheiro prá casa; engrossou muita água com farinha para acalmar o estômago; esfregou chão; esquentou sua barriga nas brasas do fogão à lenha; bateu roupa na beira do rio; cuidou dos irmãos depois da morte prematura da mãe. Luislinda foi crescendo, lutando e apreendendo, a duras penas, que havia duas Bahias, dois Brasis, dois mundos. Um dos brancos e outro, dos negros. Um dos homens e outro, das mulheres. Um dos ricos e outro, dos pobres.

Essa diferença sempre instigou sua sede por justiça. Aquele professor foi só a primeira de inúmeras situações de preconceito vividas por aquela mulher que nunca deixou de estudar. Seus três irmãos se formaram em engenharia, enquanto ela buscou em outras ciências o combate aos números da exclusão. A mulher que morou boa parte de sua infância em uma casa de sapê, se formou em Filosofia e depois em Direito, sendo aprovada em 1º lugar no primeiro concurso público que fez. A menina se tornou Procuradora. Mas seria preciso mais que esforço e dedicação para um negro ser respeitado como tal.

As forças políticas de uma Bahia dominada por coronéis brancos manobraram e mandaram a juíza para Curitiba, onde ela fez carreira, sem desistir do sonho. Anos depois de ser "exilada" no Paraná, foi aprovada, novamente em concurso público, para a magistratura da Bahia. Voltou aos prantos. Era hora de cumprir aquela promessa feita, a si mesma, diante do professor da aula de desenho. E a principal mudança não seria trocar o clima fresco de Curitiba pelos 43º do Sertão. Mas a que viria do choque social.


Minoria não

As forças políticas da Bahia novamente disseram a Luislinda o peso de ser negra em um país dominado por brancos. Embora estivesse no topo da lista dos aprovados, foi colocada em uma comarca sem luz, telefone e água encanada. A energia elétrica, quando chegou, era movida por um gerador, que funcionava apenas até as 21 horas. Depois, chegou um orelhão. Era dali, de um telefone público no meio de uma rua de terra batida, que ela realizava parte de seu trabalho e tentava buscar ajuda para aquele povo sofrido.

"Quando comecei a trazer mudanças para a vida da população, transferiram-me para outra comarca. Lá, avisaram-me, de pronto, que eu seria morta pelos donos da região. Na verdade, queriam que me matassem. E lá estava eu, entre os donos do gado e os que não tinham o gosto de ter um pedaço de carne no prato. Mesmo não sendo aceita como mulher e negra dentre os poderosos, decidi que iria erguer um Fórum naquela terra, onde a lei era à bala. Quando inaugurei o Fórum, fui transferida. Agora, para a capital".

Quando Luislinda voltou a Salvador, teve a certeza de que sua missão por aqueles negros e pobres, chamados de minoria, estava apenas começando. Minoria? Só em salvador, 89 por cento da população é negra. A média brasileira é de 48 por cento. E, segundo a juíza, esses números são ainda mais elevados em razão da vergonha de se declarar da cor negra diante dos pesquisadores do IBGE. Quanto as mulheres, já são mais de 52 por cento da população.

"Não admito a hipocrisia de que o negro ou o pobre ou a mulher é minoria. Minoria tem uma idéia pejorativa, de fraqueza social. E essa idéia fortalece o preconceito que já está enraizado em nossa sociedade. Por ser negra e assumir a minha cor, seja nas minhas roupas ou nas minhas ideologias, ninguém acredita que sou juíza. É revoltante você entrar em um banco e ser vista como ladra. Recentemente, aconteceu comigo. Se meu filho não chega a tempo, dois seguranças de um banco teriam me jogado no chão e me espancado".


Um novo jeito de fazer justiça

Luislinda nunca acreditou em justiça tardia. Por isso, foi fazer um curso na Austrália sobre justiça célere. Pagou em vinte e quatro prestações. Quando voltou e aplicou os ensinamentos, a juíza causou espanto. O cidadão dava queixa, já agendava a audiência de conciliação que, se existisse, era homologada de imediato. Caso não houvesse acordo entre as partes, a juíza fazia a instrução do processo e declarava a sentença dali alguns minutos.

Em um só dia o cidadão via o seu processo resolvido. Ao contrário de solução, isso causou problemas com autoridades locais. "Fui questionada várias vezes sobre o meu interesse, o que eu ganhava com a justiça rápida, quanto eu estava recebendo para julgar aquele processo rápido. Eu deixei de dar lucro para muita gente que se beneficia da demora da justiça. Eu fazia uma média de cinqüenta mediações por dia e é claro que isso não agradava aos poderosos".

No ano de 2003, caiu nas mãos da juíza um processo envolvendo uma negra doméstica e a principal rede de supermercados da Bahia. A ré? É claro que era a negra. A acusação? O roubo de um frango e de dois sabonetes. Agredida física e moralmente pelos seguranças e pelo gerente do supermercado, a mulher, de menos de 1,30m de altura, chorava. Eles a espancaram para que ela confessasse o roubo. Mas como ela iria confessar se não tinha feito? "Ela perguntou a razão da acusação e eles diziam: porque você é negra. O processo provou que ela era inocente. Eu dei a sentença e fui ameaçada de morte. Perdi a conta de quantas vezes fui ameaçada. Se um dia eu for morta, todos podem ter a certeza de que o assassino é o racismo. Porque o racismo é de carne e osso."

"Como não conseguiram me matar fisicamente, tentaram de outro jeito. Fui jogada no ostracismo. Fecharam-me todas as portas dentro do Judiciário. Eu continuei a minha luta e comecei a fazer minhas audiências na periferia, nas comunidades mais pobres, nas favelas, nos alagados, nos quilombos. Sempre fui tida como uma juíza menor. Para provar isso, basta dizer que sou uma das mais antigas da magistratura de Salvador e, até hoje, não me deixaram ser desembargadora".

A juiza suspira, leva os olhos para longe e continua. "Se eu colocar num papel as vezes que me habilitei a esse cargo, o cumprimento da folha ultrapassa um metro. Nunca recebi um voto sequer. A justificativa que ninguém tem coragem de falar oficialmente, mas que está nos olhos de todos é uma só: nós não queremos uma desembargadora negra. No Executivo e no Legislativo as portas se abriram antes. Já há um número, ainda pequeno, mas concreto de deputados e ministros negros. O Judiciário ainda resiste. O Joaquim Barbosa, do STF, é o início de uma mudança tardia".


Reconhecimento

Em todos os tribunais por onde passa, Luislinda diz em alto e bom som que é negra, da
periferia, mulher, divorciada e nordestina. Muitos servidores se fortalecem quando escutam isso, porque se identificam, mas os magistrados fazem questão de ignorá-la e se fazerem de surdos e cegos diante de suas inovações. Por isso, o reconhecimento pelo seu trabalho vem de fora da Corte.

Em Brasília, a juíza recebeu um prêmio como a magistrada que mais resolveu processos
por mediação. Em São Paulo, recebeu um prêmio por sua colaboração com o desenvolvimento do Planeta. Foi escolhida pelo governo do Paraná para representar a mulher brasileira no Fórum do Mercosul. É a única juíza convidada a fazer palestras pela ONU e a receber a comenda Zumbi dos Palmares.

Nenhum desses prêmios emociona mais a juíza do que a resposta da população. "Quando chego aos quilombos, aquele povo descalço me convida para entrar em seus barracos e, na brasa de um fogo improvisado, faz café, assa peixe. Eles se sentem à vontade vendo uma juíza andar com cabelo rastafari no meio deles. Muitos não procuram a justiça porque não têm roupa, não têm perfume, não sabem falar direito, têm medo de serem presos, não sabem escrever, acha-mse perdedores por natureza. A conclusão explícita é que a população não se enxerga no rosto do Judiciário brasileiro".


O judiciário tem que ir ao povo

"Estamos na era da humanidade constitucional. Devemos expandir a nossa visão, ver de onde vem o réu, nos perguntar a razão de suas atitudes, onde e como nasceu. Essas perguntas não estão naqueles livros que enfeitam as estantes dos gabinetes. Se as pessoas não chegam ao Judiciário, o Judiciário tem que ir até elas".

Foi com esse pensamento que Luislinda criou o juizado marítimo. "Estava na feira de São Joaquim, comprando mariscos, e perguntei o nome da mulher que vendia a lambreta (era esse o nome do marisco). Ela disse que era Maria. Maria do quê? Maria, Maria... Quando apertei a mão dela, senti um ralo de coco, fruto de tanto catar marisco na areia. Maria era trabalhadora, velha, negra, pobre, mulher e não-cidadã. A Marinha me cedeu um barco e eu passei a percorrer o povoado daquelas 12 ilhas, levando justiça a quem nunca havia entrado num tribunal, num cartório, num fórum".

"Criei também a Justiça Bairro a Bairro para atender a população de baixa renda. Eu transferi meu gabinete para um ônibus, que sacolejava pelas vielas da miséria e parava nos bairros para atender a população. Coloquei também duas carretas para atendimento jurídico em Feira de Santana. Instalei o primeiro Juizado de Combate à Violência Contra a Mulher, em Salvador. Lá, tive o prazer de ver aquelas mulheres de olho roxo, de cortes de navalha no rosto, de braços engessados, encontrarem amparo na justiça".

"Levei o Judiciário para a escola com o projeto Justiça, Escola e Cidadania. A cada rodada do projeto, selecionávamos duas escolas públicas e durante dois dias, essas escolas tinham serviço de cidadania e justiça, com atendimento e palestras. No último dia, os alunos ganhavam cesta básica, computador, liquidificador, freezer, ferro de passar, de acordo com a necessidade de cada comunidade. Eu nunca tive vergonha de sair às ruas pedindo doações para os mais pobres".

"Eu já fiz parcerias com igrejas de todos os credos, bancos, universidades e deputados, porque a magistratura, em sua maioria, insiste em não descer do pedestal para olhar os menos favorecidos, e eu não sou rica. Aliás, o juiz não pode ser rico. O juiz é um funcionário público, como tantos outros, com suas responsabilidades e deveres, e não um empresário. Justiça não é um negócio, é uma tarefa árdua e diária. Ser juiz é atender quem está mal cheiroso, mal vestido".

Em 2003, a juíza Luislinda implantou o projeto Balcão de Justiça e Cidadania, que além de oferecer serviços jurisdicionais, tem projetos voltados para a inclusão, para a cidadania. Esse projeto ganhou reconhecimento da mídia, por ser o caminho para uma Justiça mais popular, mais humana, mais ampla e menos burocratizada.


A cada dia, uma nova luta

"Conforme eu criava, implantava e desenvolvia os projetos, tiravam-me da coordenação
deles e abortavam, assim, a esperança de justiça que já havia se espalhado pela comunidade. Tenho sofrido bastante e acho que não merecia passar um terço do que eu passo".

A mulher de sorriso farto deixa lágrimas escorrerem pelo seu rosto de olhos esverdeados.

"Vou fazer cinqüenta anos de serviço público e ainda não sou respeitada. O Brasil prefere gastar muito dinheiro, trazendo gente da Europa para fazer mediação e me deixar de fora. Será que é porque eu conheço a realidade da periferia como a palma da minha mão? Será que é porque eu vim de lá?"

Nunca quiseram implantar seu projeto Inclua na Educação e Exclua da Prisão, voltado para detentos. "Quando a gente entra na penitenciaria, o que a gente vê são cabelos carapinha, pele negra, jovens de menos de vinte e cinco anos com pedaços de sandália nos pés. Muitos estão ali sem necessidade".

"Nós estamos perdendo mais de 100 jovens negros por final de semana na periferia de Salvador. São 15 homicídios, mas os que morrem são muito mais. Morre quem morreu de fato, quem matou e a família das vítimas e do assassino". E as inovações não param
por ai.

"Estruturei um projeto chamado a Justiça no Velho Chico. Juizados seriam criados às margens do rio e consegui um barco para percorremos o Velho Chico da nascente em Pirapora (MG) até Juazeiro (BA). Consegui patrocínio para esse projeto que ia cuidar da justiça, desde o nascimento à morte do cidadão ribeirinho, mas também não me deixaram fazer".

"Andando pelas comunidades, testemunhei o grande número de pessoas com desejo de casar de papel passado sem ter dinheiro para isso. Organizei, e organizo até hoje, vários casamentos coletivos. Compro flores, tapete vermelho, pago as certidões, porém, na hora de celebrar, sou trocada por juízes brancos. Sempre dizem que não é o meu momento. E eu pergunto: quando é que vai ser o momento do negro no Brasil? Quando?"

Recentemente, Luislinda se candidatou à vaga de Sepúlveda Pertence ao Supremo e seu nome sequer constou na lista dos pretendentes. "Quando fui fazer a minha inscrição no Ministério da Justiça, os servidores ficaram espantados com o meu currículo, mas o que ganhei foi descaso e discriminação. Desafio uma realidade, onde os servidores negros entram no Judiciário por concurso público, mas são barrados para os cargos mais altos, que são distribuídos por indicações políticas".


Perseguição

"O ACM (Antônio Carlos Magalhães) criou uma série de dificuldades na minha vida, muitos momentos constrangedores, mas o problema maior está dentro do Judiciário. Todo mundo diz que não é racista, mas o preconceito é velado. Eu sempre digo: vire negro por vinte e quatro horas e depois me conte se existe ou não preconceito. Pode ser flanelinha ou juiz, o preconceito é o mesmo. E só a educação pode mudar esse cenário".

"Cada um tem de fazer a sua parte. Não podemos esperar que a construção de um mundo melhor venha de cima. Eu vou arrecadando livros, especialmente sobre Direito, e os distribuo na periferia. Dou palestras em galpões, em praça pública, em associações de moradores sobre assuntos palpáveis, como Direito Criminal, do Consumidor, Constitucional. Os nossos magistrados precisam deixar de ficar falando de positivismo, de Montesquieu diante dos negros, que sem oportunidade, ou morrem ou matam".

"É preciso levar a Justiça para perto dos menos favorecidos e não os afastar de seus direitos. Agora, estou distribuindo o Estatuto do Idoso nas paradas de ônibus de Salvador. O velho ainda sofre, e muito, no nosso país. Cuidam do idoso, que é o rótulo da elite da terceira idade, mas se esquecem do velho que é o pobre da periferia. A lei só no papel é bonita, mas e daí? Ela precisa ser conhecida, compreendida e aplicada".

"Quanto mais negros entrarem para a escola e se formarem em Direito, mais chance o Brasil terá de mudar sua política, sua visão e seu Judiciário. Sou a favor das cotas para o ingresso nas universidades, nos concursos públicos e na magistratura. Até a indicação política, que devia ser banida do nosso país, deve levar em conta essas cotas. Mas sou a favor de cotas temporárias. Precisamos equilibrar a situação e não criarmos um assistencialismo eterno. Os negros, os pobres, as mulheres, todos têm potencial, desde que em iguais condições de competição".

"Essas condições não existem hoje. O negro vem da periferia, debaixo de sol, de chuva, sem roupa digna, sem tomar café, em ônibus ou trens lotados, sendo humilhado pelas propagandas na TV de marcas que não pode comprar. Tudo isso reflete no aproveitamento da criança negra que chega à escola com potencial reduzido e ainda é vítima de piadinhas preconceituosas".

Uma nova geração, segundo especialistas, demora 40 anos para se formar. Talvez seja esse o tempo médio da vigência das cotas na visão da juíza. Hoje, segundo a AMB, menos de um por cento dos juízes são negros. "Eu quero viver o suficiente para ver os negros no primeiro escalão do Judiciário e também ministros da Fazenda, da Educação, de Relações Exteriores, Embaixadores e Procuradores negros. Essa revolução, inclusive na magistratura, só se dará por meio da educação. Nós temos muitos outros Joaquins Barbosas, em várias áreas, esquecidos nesse imenso Brasil".

"O meu sonho? Queria apenas continuar trabalhando para incentivar as pessoas negras e mais pobres a lutarem por seus direitos. Não tenho pretensões de ser uma justiceira, mas me sinto um pouco mãe dessa gente. E mãe, por natureza, cuida. Eu tenho um filho, negro, que é promotor de justiça em Sergipe, mas muitos da periferia também me chamam de mãe".

É com esse sentimento que aquela mulher de aparência frágil enfrenta o preconceito, com a força de Xangô (orixá da justiça), e vai caminhando por um Brasil tortuoso que nega o espelho ao se enxergar, equivocadamente, como branco caucasiano. "O nosso país não é só branco, como também não é só negro. Mas um dia ainda vão entender isso. Tenho muita fé nisso. Por isso, vou caminhando e abraçando todo mundo, afinal meu coração é muito grande e não se cansa de ter esperança".


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