Daniel Campos

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08/04/2010 - Capítulo 10

Que coisa é essa?

Sebastian fecha os olhos e começa a rezar. Aquela coisa que se apoderou de Malena continua falando absurdos ao seu respeito. Mas ele não desiste e insiste nas orações até o momento em que a cor dos olhos de sua mulher retorna ao tom normal e ela volta a si.

Para sua surpresa, ela reclama de dor de cabeça e diz não se lembrar de nada. Teve um lapso de memória. No entanto, voltou ainda mais estressada. Com ódio, pergunta ao marido que coisa é essa que ele se tornou a ponto de beber escondido, de esmurrar os outros, de se descontrolar no tribunal.

O promotor se atrapalha todo e conta de forma atordoada o que acabou de ocorrer ali e ela o chama de maluco.

Ele vive a dúvida se aquilo tudo aconteceu mesmo, se havia algum demônio no corpo de Malena ou se ela encenou esse teatro de péssimo gosto para evitar novas brigas e discussões.

Seus pensamentos estão confusos. Há um quebra-cabeça que não se encaixa. Os mais de trinta anos de serviço à igreja eram insuficientes para entender tudo aquilo.

De repente, a raiva se transforma em dor. Malena se deita, sentindo-se muito fraca e indisposta. E eis que ela pede carinhosamente um remédio para enxaqueca. Sem dúvida, há algo estranho em curso.

Sebastian passa a mão na barriga da esposa e pergunta se está tudo bem com o bebê. Ela responde caladamente que sim.

Ele corre para buscar um comprimido no armário do banheiro e quando volta os olhos dela estão estranhos novamente.

- Trouxe água benta para mim? Pois saiba que eu não tenho medo de sua reza. Deus não terá misericórdia de você. Afinal, ele também compactua com o seu castigo.

- Vai embora, seu maldito, seu desgraçado, seu renegado.

- Oba! Agora sim uma conversa de alto nível. Mal me conhece e já me elogia dessa forma.

Malena, ou quem quer que seja que está em seu corpo, escorre, de baixo para cima, as mãos pausadamente pelas pernas de modo a subir o vestido floral até a altura do sexo. Ao fazer isso, instiga:

- Este corpo em breve será de outro. Quem sabe meu ou de Hernández.

- Deixe minha mulher em paz, seu infeliz!

- Aiai, que mulher vai querer um homem que mata seu filho, que destrata sua mãe, que deseja sua filha, sua cunhada, sua empregada?

- Cale a boca, demônio. Eu não as desejo. Eu não as desejo, escute bem filho dos infernos, eu não as desejo nem nunca desejei!

- Você sabe disso, eu sei disso, mas não vai ser o que ela vai pensar quando eu sair daqui...

- Seu verme!

- Isso. Insulte-me. Coloque todo mau que há em você para fora. Sua raiva me fortalece...

Sebastian começa a rezar em voz alta a oração de seu protetor:

- São Miguel Arcanjo, protegei-me nos combates, defendei-nos com o vosso escudo contra os embustes e ciladas do demônio...

- Deixa de ser patético. Você acha mesmo que alguém vai dar-se ao trabalho de salvar um condenado, um marcado para o castigo?

- Que história é essa de que eu estou marcado?

- Se não sabe não sou eu quem vai lhe contar. Estou aqui só para ajudar no cumprimento do seu destino. O que eu posso dizer agora é que isso não será nem um pouco agradável para... você, é claro.

- Quem é você? De onde veio? O que quer?

- Quantas perguntas. Eu já lhe disse que quero apenas ajudar.

- Ajudar?

- Ajudar a dar prosseguimento à ordem natural das coisas, ou seja, castigar-lhe...

Aquele que domina Malena abre a boca e sopra um hálito frio e fedorento, como que soprado de um pântano. Sebastian tem um arrepio longo e ruim. Sua cabeça também começa a doer.

- Vá se acostumando com o cheiro do umbral. É lá que você vai viver daqui alguns dias. Você, Malena e esse seu filho que, se depender de mim, não vai nascer.

- Umbral, o que é isso?

- Não lhe ensinaram essas coisas no catecismo? Ah! Esqueci-me que a igreja católica não gosta de falar dessas coisas. Prefere ficar pregando histórias boas, agradáveis. Afinal, quanto mais dócil o rebanho melhor se dá a sua condução.

- O que é esse umbral? Fale-me! Eu exijo!

- Só faltou dizer que se eu não disser o que você quer ouvir irá me prender. Nem com todos esses castigos você perde seu ar superior, sua estirpe de mandão. Pelo jeito vou ter que ir um pouco mais longe...

Suspendendo o vestido e passando a mão pela barrida de Malena:

- Imagine esse bebê sendo cortado pelos dentes de uma gente faminta. Imagine aquele sangue novo e puro escorrendo pelas bocas de pecadores como você. Sinta, desde já, as dores de ver sua mulher sendo estuprada diversas vezes ao dia.

Sebastian contorce os músculos da face. A criatura continua sua fala:

- Pense no seu corpo sendo amarrado e chicoteado sem dó. Pense que você nunca mais vai poder falar ou, abraçar ou, beijar ou fazer amor com Malena.

Uma lágrima cortante como lâmina de barbear escorre pelo rosto banhado de angústia daquele homem que até então não acreditava em fantasmas.

Num gesto abrupto, aquele espírito quebra a taça de água que repousava ao lado da cama e passa o cristal pontiagudo pela barriga da dona daquele corpo. A pele clara vai ganhando traços vermelhos num desenho diabólico.

Sem saber o que fazer, Sebastian tem o impulso de retirar sua corrente do pescoço e colocá-la em Malena. É uma corrente de ouro com pendente em formato de crucifixo. Foi um presente de sua avó, dado no dia em que fez a primeira comunhão. Ao longo da vida foi benta por muitos padres. Não a tirava por nada, nem para banhar-se nem para dormir.

O espírito resiste, fere aquele homem apaixonado com o que sobrou da taça, porém, mesmo com o braço ensangüentado, ele consegue cumprir sua tarefa. A corrente chega a queimar a pele de Malena, que fica da cor do ardume.

Sem barulho, os olhos dela se fecham, seu corpo estremece, quase desmaia e tão logo desperta dizendo que Sebastian só sabe machucá-la.

O promotor não sabe se aquilo é real ou pura encenação. Já havia presenciado muitas coisas no tribunal, mas aquela dramatização era-lhe inédita. Não tinha conhecimento algum sobre aquela situação tão grave quão inesperada.

Sem querer discutir, ele começa a cantar um salmo. O sal da terra e a água dos céus se encontram em lágrimas que transforma seus olhos em duas ilhas cercadas de espanto e medo.

Um tanto quanto zonza, Malena se aquieta e repousa nos braços do marido como pássaro acuado.

Observação do autor: Atenção: próximo capítulo no dia 13 de abril (terça-feira)


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