Daniel Campos

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22/05/2016 - Canto de libertação

Com o dia quase raiando, o galo subiu no poleiro, estufou o peito e silenciou. Ali não era o melhor lugar para ele anunciar o novo dia. Precisava de mais. Subiu então na carroça velha, que já dava de comer aos cupins, e se preparou, mas, novamente, engoliu o canto ao ver que a cerca. E subiu no mourão mais alto, chegou a abrir as asas, mas ainda não estava bom. Ele queria mais. E foi então que subiu no telhado da casa de seu dono. Já tinha certa idade e não tinha o mesmo vigor, seus passos eram lentos, mas seu canto ainda era belo. O tempo deu um tom ainda mais grave as suas notas. E ele sempre foi elogiado por sua afinação. E, com a teimosia de sempre, subiu no telhado vendo boa parte da fazenda aos seus pés. Bateu asas, esticou o pescoço e segurou o canto já no findar do bico vendo que o jatobazeiro era muito mais alto que o telhado da casa. A essa altura, o dia já clareava. E lá foi ele para o pé de jatobá, voando seu voo curto galho a galho. Perdeu muitas penas na subida, pois ora se debatia contra a árvore ora tentava se agarrar nela. Ficou sem fôlego, mas não se deu por vencido. Encontrou uma coruja que arregalou os olhos sem entender o que aquele galo fazia ali. Chegando ao ponto mais alto da árvore, ele contemplou o sol que já reinava. Nunca havia visto o sol tão de perto. E se galos não choram, aquele galo avermelhado, azulado, acaipirado chorou. Chorou diante da beleza do sol que chegava até seus olhos. Ficou hipnotizado. E preparou seu canto. Precisava ser seu canto mais bonito. O melhor de sua história. Concentrou-se. Deixou a música fluir por todo seu corpo. Peito estufado. Pescoço alongado. A curvatura perfeita. Bateu asas. Tremeu-se todo na iminência do cocoricar. Abriu o bico e... e... e... calou-se. Calou-se a perceber que as galinhas já estavam ciscando no terreiro, que o fazendeiro já ordenhava as vacas, que dona Maria já estendia roupas no varal, que os porcos já rolavam na lama, que a fazenda já havia amanhecido, acordado e acontecido sem o seu chamado. Sentiu-se desnecessário. Porém, estava feliz por estar ali e por estar liberto da obrigação de despertador que cumpriu por tantos e tantos anos. Ninguém havia dado por falta dele. E isso não era motivo para lamentação, mas sinal de que ele poderia partir. Estava livre. Foi preciso mudar seu ponto de vista, sair do óbvio, do lugar comum, para perceber que podia seguir em frente. E, ciente disso, de forma espontânea, cantou de um modo que nunca havia cantado. Um canto de libertação. De autolibertação. E já não importava para quem cantava, mas o que ele cantava a si mesmo. Ele segurou o último acorde para além dos limites e bateu asas. Voou um voo curto. Voou um voo último. Voou em direção ao sol. E por mais curto que seja o voo de um galo, durou, para ele, uma eternidade, antes de chegar ao chão num corpo condenado ao silêncio, mas numa alma que, para sempre, ecoaria ensolarada por aquela fazenda.


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