Daniel Campos

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Brasil sem rosto

"Eu vi o menino correndo, eu vi o tempo brincando ao redor daquele menino". Menino que nasceu no finalzinho do século passado e ainda não encontrou o seu rosto. Menino que se vê frente a frente com uma tecnologia avançada, cada vez mais longe do humano. Menino, analfabeto de informática. Menino que fala "I love you" e não sabe o que é amar.

Menino da liberdade de pensamento, de expressão, de comunicação. Menino que não sabe a ditadura. Militares, exílios, lutas, ideais,..., ficaram presos nas histórias que não contam mais. Menino que se acha envolto de paz. Menino que nunca cantou pela liberdade com Geraldo Vandré. Menino que sempre esteve livre. Os pássaros são livres até que se debatam contra os arames da gaiola. Menino, prisioneiro de um mundo de mentiras.

Entre tantos planos, menino do plano real. Menino que teve seu sono embalado por notícias de corrupção. Menino que logo aprendeu a pronunciar injustiça. Uma das lições foi a de que tudo acaba em "pizza". Menino que acha que a esquerda só existe para perder eleições. Embora não nasceu num reinado, só viu FHC no posto máximo da nação. Em volta do "rei": ACM, Jader Barbalho, Alckmim, Serra... Menino do reino dos enganos.

Menino condicionado a ver a vida como uma constante e selvagem busca pelo sucesso financeiro. Menino que acredita que as dores do oriente se resumem as dores amorosas de Jade (A personagem de Giovana Antonelli na novela das oito). Menino que se depara com aqueles que se autodenominam artistas e se mostram, de cima a baixo, numa casa mantida pelo SBT. Menino das baratas, da fome ou do dinheiro? Menino do mundo pela TV. Menino que olha ao lado e, depois de tanta propaganda, tem a impressão de que o mundo foi feito por Maluf.

"Eu vi o menino correndo"... Menino que cresce sem exemplos. Eu ouvi Gonzaguinha, vivi Ayrton Senna, sofri Betinho, vi Garrincha nos olhos de meu pai,..., mas e esse menino? O menino cresce com Ronaldinho, Kléber bam-bam, Rubens Barrichello. Cresce com uma visão de competição, de que se for preciso trair um país inteiro para ser feliz (financeiramente), trai. Infelizmente, os que lutaram pela plenitude da vida saíram do palco. A mídia exilou os nossos Caetanos. E o pior, a nova geração ainda não encontrou a sua cara. Triste época desse menino, onde o espetáculo troca os aplausos pelos centavos.

Menino de sonhos podados. O mundo lhe oferece um catálogo de sonhos em dólar. Uma viagem até o espaço custa X, um título de campeão do mundo custa Y, uma profissão vale W, uma pequena dose de fama custa Z. Menino que nasce entre mais de cinqüenta milhões de pobres e vê que os sonhos são apenas para uma pequena parte da população. Perde-se a vontade de sonhar e entrega-se a uma vida pela metade. Bons tempos aqueles em que a vida não tinha preço e, por conseqüência, ninguém podia comprá-la com moedas.

Menino... tiram sua terra, tiram sua educação, tiram sua comida, tiram o salário de seus pais, tiram sua paz, tiram sua dignidade e você não percebe. Menino... tiram seus sonhos e você nem sente dor. Menino,, será que ainda dá tempo de fazer a vida valer a pena? Menino... será que ainda consegue sonhar? Menino... será que ainda consegue amar?

Menino, para o seu bem, fique alguns instantes sozinho consigo mesmo e escute as vozes da vida. Quem sabe, menino, alguma delas lhe diz: "nada além, nada além de uma ilusão" (Mário Lago). Menino.. a vida é sonho e ilusão. O tempo, por mais que brinque, não pára. Quem sabe um dia, menino, tenha um uma identidade, uma felicidade, uma saudade. Por enquanto, você é só um menino brasileiro correndo pelo tempo. Por enquanto.


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