Daniel Campos

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Boca chabernet

Onze horas da manhã. O cabelo molhado, emaranhado e colado ao início das costas. O olhar varre o guarda-roupa. Depois de tanta procura, descalça e de hobby, vai para a sacada. Seu olhar ganha a linha paralela do horizonte. Paralela? Paralela com tantas coisas. Lembranças brincam de correr por aquela linha, brincam de escorrega, brincam de gangorra, brincam de pique - esconde. Lembranças.

Por debaixo daquela linha, paralela a um mundo distante, os olhos quase se afogam em um lago. É preciso ter cuidado e equilibrar o olhar naquela linha. Embora de águas calmas, ninguém sabe os perigos que habitam aquelas águas azuladas. Seres fantásticos podem existir ali. E talvez seja em busca desses seres que aquela mulher entrega olhares à varanda. Quase 12h e as piscinas do hotel, que se acabam antes do lago, continuam vazias. Nenhuma criança, nenhuma cena de beijo, nenhum copo carente de sol. Ninguém.

O horizonte dividia céu e lago e as piscinas se espremiam entre o lago e o hotel. Um hotel com linhas européias. Talvez algum estilista desistira dos tecidos e fora para o concreto. Talvez. Eram cortes, decotes, recortes, bicos e fendas naquele concreto. Um estilista que ousara na cor. O hotel tinha cor de vinho tinto. E aquela mulher continuava na varanda. Pena que não fumava, pois era o momento ideal para acender um cigarro.

Ela podia dançar cantar espernear e até pular da varanda, mas continuava lá, com olhos de vitrine. Olhava e esperava que alguém a olhasse. Entregava-se naquela varanda. O vento trazia um cheiro azul. Os cabelos secavam. E ela, naquele transe, naquela paciência budista, esperava sei lá o que. Como se o tempo cochichasse em seus ouvidos, ela volta ao guarda-roupa. Folheia dezenas de biquínis. Lisos, listrados, florais... E quando parece estar decidida, deixa o hobby cair e veste uma calça jeans, uma camisa de se amarrar com laços e um sapato de salto alto. Pega o primeiro elevador que aparece e caminha ferindo a solidão que anda à solta, entre o horizonte, as piscinas e o hotel tinto. Tinto como o batom que tentava disfarçar a solidão nascente em sua boca poente.


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